Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Coronavírus

Sugiro rebatizar a nova variante do coronavírus

Por descaso, vemos o mundo se ajoelhar diante do vírus outra vez

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Entendo que a cobertura vacinal funciona como se cada cidadão contribuísse com uma telha para cobrir uma casa castigada por um temporal. Pouco importa se sua telha é rosa ou transparente, desde que ela cumpra sua parte nessa proteção. Lembrando que é necessário dar abrigo àqueles que por razões lícitas (crianças, imunodeprimidos) não podem contribuir com a sua cobertura individual. A analogia me ocorreu na época dos sommeliers de vacina que colocam suas prioridades imaginárias acima de uma causa maior, que, ironicamente, também os prejudica, uma vez que a coisa toda só funciona no atacado, não no varejo.

Nos vemos agora diante da tão temida previsão dos epidemiologistas: a hesitação na cobertura vacinal, a transmissão desenfreada por um tempo prolongado nos levando a produção de uma variante mais contagiosa, de letalidade desconhecida e cuja resistência às vacinas permanece uma incógnita. Fogo no parquinho e duas reações imediatas.

Homem recebe vacina contra a Covid em vagão de trem que foi adaptado para posto móvel de aplicação de imunizantes, na África do Sul - Siphiwe Sibeko - 27.ago.2021/Reuters

Uma, como bem apontou Mathias Alencastro nesse jornal, foi de fechar acessos internacionais a cidadãos de alguns países africanos, criando um cordão de isolamento político geográfico, que penaliza mais ainda os que sofrem do apartheid vacinal (feliz expressão do querido Paulo Werneck). As consequências econômicas e sociais são desastrosas e duradouras.

A outra foi um sentido de urgência para aproveitar a janela de oportunidade ameaçada de fechar pela sombra do ômicron, a nova variante, produzida pelo descaso da civilização. O desejo delirante de antecipar o Carnaval para o último fim de semana passou pela cabeça, como num sonho diurno com a finalidade de compensar tamanha frustração e angústia diante da terrível possibilidade de voltarmos à estaca zero.

A lição que se esconde sobre a nova onda de Covid é que cobrir o Hemisfério Norte e parte da América Latina, deixando a África ao Deus dará, é como telhar a sala de estar enquanto deixa os quartos a céu aberto. Não dá para morar nessa casa que chamamos de Terra, se continuarmos a pensá-la como partes isoladas e independentes.

Se você acha que se trata apenas de problemas de alguns países do combalido continente africano, vale lembrar o abismo entre os números de sudestinos vacinados em comparação com nortistas, no Brasil, e veremos que o apartheid é o que está verdadeiramente acima de tudo em nosso país. O estado de São Paulo comemora quase 75% de sua população imunizada com duas doses, enquanto Roraima mal passa dos 30%, num flagrante de injustiça social que só um governo que cumprisse sua função de diminuir desigualdades poderia equalizar.

Corremos contra o relógio, enquanto o vírus segue inabalável em sua sanha por sobreviver –luta por existir que não deixa de ser admirável. Entre humanos a pequenez de objetivos e a falta de visão de longo prazo têm trazido tanto sofrimento e tamanha ameaça às futuras gerações que causa inveja a capacidade de um vírus de mutar. Qual seria a mutação necessária para os seres humanos sobreviverem se não uma visão de conjunto mais inteligente e menos predatória?

A pandemia, seu manejo e consequências em escala global explicitam pedagogicamente as perdas coletivas de uma civilização decadente. As variantes que tanto nos ameaçam –cujas aparições têm sido alertadas por cientistas desde o início– encontram em nossa hesitação individual e institucional (de governos e órgãos internacionais) seu criadouro.

Sem querer tirar o mérito do próprio vírus, sugiro rebatizar a variante ômicron de hominecron.

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