Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Natal

Armistício de Natal

Melhor que evitar assuntos-bomba seria mudar o que se entende por família

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O epicentro do Natal é a família, essa estrutura que dá margem tanto à alegria quanto ao choro e ranger de dentes. Falar de família exige contextualização, pois ela se apresenta em muitas versões, e é crucial desnaturalizar seus cânones. "A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado", escrito por Friedrich Engels em 1884 —com edição de 2021 caprichada da Boitempo— continua sendo leitura fundamental sobre o tema, mesmo com as sabidas críticas.

Na contemporaneidade, a família se institui a partir dos afetos. Nos unimos por amor, intimidade, respeito e desejo e nos separamos na falta deles. Conveniências e outros interesses precisam vir travestidos de amor para emplacar socialmente na constituição de uma família.

Mas mesmo o amor não é "a flor roxa que nasce no coração dos trouxas", afeto espontâneo e solto no espaço. Trata-se de um afeto ditado por valores e contingências sociais. Haja vista a solidão da mulher negra denunciada por bell hooks —que infelizmente nos deixou semana passada.

A família contemporânea está sujeita à volatilidade das paixões e a promover grandes injustiças. Quando se alça o parentesco a um lugar excepcional dentre todos os outros laços sociais, os atos dos familiares passam a ser relativizados e acobertados no âmbito público, tornando a família uma ameaça potencial à sociedade como um todo. Esse é o paradoxo contemporâneo, no qual o que foi feito para manter a sociedade coesa acabou por se tornar o "nós contra a rapa" que o termo familícia veio explicitar.

O Natal, cuja religiosidade beira o nulo, é a festa familiar por excelência e a propaganda ligada ao consumo, que tem sido seu motor, busca se promover às custas dessa ideia. Que se inclua as famílias ditas diversas (monoparentais, não brancas, LGBTQIA+), não foge à regra de pensarmos seu valor basicamente ligado ao parentesco.

Mais de 85% da população brasileira se diz cristã, o que não impede que os 15% restantes confraternizem no nascimento de Jesus. Daí ateus, judeus, budistas, muçulmanos e outros não dispensarem um convite amistoso para a ceia natalina.

A edição 2021 do Natal tem o agravante de não ser inteiramente pós-pandêmica, gerando aflição. Muitos perderam familiares por se arriscarem demais no Natal anterior. Baixa imunização em algumas regiões do país e novas variantes pairam como estrela de Belém sobre nossas cabeças. Além disso, a inflação torna a ceia mais parecida com a "Vaca Magra" da artista plástica Márcia Pinheiro instalada em frente ao prédio da Bolsa de Valores do que o "Touro de Ouro" —dos tolos—, previamente retirado do mesmo local.

Nos restaria apostar nos laços amorosos dentro da família, mas esses têm se mostrado pouco resistentes às polarizações e, mais do que nunca, ela tem sido palco das violências domésticas.

Sugiro apelar para a etiqueta na ansiada e ansiógena noite de Natal, abolindo assuntos espinhosos como política partidária e, a rebote, gênero, raça e orientação sexual. Na impossibilidade de fazê-lo, ainda cabe a técnica do "olé", na qual você passa o evento evitando confraternizar diretamente com aqueles que sabidamente não respeitam o armistício de Natal.

Mas a dica boa mesmo, aquela que poderia nos livrar de problemas tanto no âmbito doméstico quanto no coletivo, seria aquela na qual criticamos a idealização infundada dos laços familiares e apostamos que as relações nas quais imperam a amizade, o afeto, a intimidade e a solidariedade são as verdadeiramente valiosas. Essa dica tem uns 2.000 anos.

Bom Natal.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto citava 25% entre os não cristãos. O correto é 15%.

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