Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

A tal felicidade

Busca por ser feliz a qualquer preço produz depressão e sofrimento

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Acaba de ser lançado em português Happycracia (editora Ubu), do psicólogo Edgar Cabanas e da socióloga Eva Illouz. Os autores não precisaram da psicanálise para escancarar a incrível história de como a psicologia positiva, praga contemporânea, afeta até políticas governamentais. O nome de Freud só aparece uma vez em todo o texto e apenas para certificar ao leitor que na tirania da felicidade o inconsciente não tem vez. Como o dia 20 de março é tido como Dia Internacional da Felicidade, vale retomar o tema.

sorriso de um homem, que puxa as pontas de lábios com os dedos
É preciso reconhecer alternância entre sentimentos; onde só há satisfação não há mais desejo - Getty Images

Cabanas e Illouz partem da surpreendente história do psicólogo americano Martin Seligman para descrever como a felicidade se tornou a medida da qualidade de vida de um povo e passou a reger políticas públicas e a economia. Vale ler a entrevista que Cabanas deu à BBC, em dezembro, republicada pela Folha.

O livro relata como o inexpressivo autor da psicologia positiva, estressado com sua própria vida, em um momento de epifania, descobriu que bastava olhar para o lado cheio do copo que a vida melhorava.

Pouco importam pobreza, violência, racismo ou guerra, se você estiver bem consigo mesmo. Se, no entanto, você está infeliz, a culpa é sua, lógico, e o tratamento é aumentar a dose de pensamento e atitudes positivas. O empreendedorismo da felicidade faz eco com a uberização da vida, daí a repercussão imediata das ideias positivas.

Equívocos relacionados à felicidade, que a colocam como bem a ser alcançado a todo preço, causam, paradoxalmente, infelicidade, sofrimento, depressões e outras provas de que não é bem assim que as coisas funcionam.

A felicidade está para o sofrimento assim como a música está para o silêncio, um não vai sem o outro. Ela é episódica e, embora momentânea, poderá ser saboreada como lembrança em momentos menos afortunados. O reconhecimento dessa alternância permite que estejamos abertos para os bons encontros e nos dá coragem para enfrentarmos os maus. Caso não haja esperança de voltar a experimentar momentos de satisfação, a rememoração pode desembocar numa nostalgia melancólica.

Embora sejamos afetados diretamente pelos acontecimentos ao redor e seja difícil pensar em sentir-se bem em plena pandemia ou guerra, nada impede que nos sintamos felizes por estarmos vivos, termos relacionamentos significativos ou realizarmos um trabalho satisfatório. Não se trata de "gratiluz", mas do reconhecimento de que há camadas de diferentes afetos que se sobrepõem e alternam. Não há platô a ser alcançado, nem qualquer estabilidade, pois as satisfações são sempre parciais. Uma vida de plenitude nirvânica, já dizia Freud, só seria encontrada em útero ou na morte. Onde só há satisfação não há mais desejo e, na falta do desejo, a vida acaba. Não à toa chamamos o orgasmo de pequena morte.

Estamos condenados a atribuir sentido a nossas vidas e, na falta dele, podemos entrever depressões e risco de suicídio. Não é de se estranhar, portanto, reconhecermos a posteriori que alguns momentos especialmente desafiadores podem ter sido os melhores de nossas vidas. Pessoas que fazem trabalhos solidários em meio a situações duríssimas, embora sofram por compaixão pelas vítimas, relatam a satisfação de se sentirem úteis, reconhecidas e fazendo algo pleno de sentido. Nem sempre se encontra essa satisfação na placidez da vida ordinária. Aos pais, sugiro que não tenham a felicidade como meta para os filhos. Mais fazem se lhes almejarem uma vida desejante, impulsionada pela falta.

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