Em análise, a regra básica é falar o que vier à cabeça. Mas, como Freud descobriu assim que abriu mão da hipnose, ela esbarra em um impedimento: a autocensura. O trabalho analítico se dá na tentativa de suplantar as resistências, entre elas a que nos impede de falar tudo. Além disso, a própria linguagem é incapaz de nomear a vida. Seguimos analisando, então, assumindo esses dois impossíveis.
Já no âmbito público, o gozo da fala solta e inconveniente virou uma qualidade premiada com seguidores, projeção, dinheiro. Seria uma contradição?
As redes virtuais permitiram que as pessoas emitissem as opiniões que guardavam para si por medo de retaliação ou falta de oportunidade. O cidadão comum passou a encontrar ecos da própria voz mundo afora, onde havia outros que pensavam como ele. Se, por um lado, isso permitiu que sujeitos oprimidos fossem ouvidos e saíssem da invisibilidade, por outro, promoveu as ideias mais sinistras. Aquelas que revelam nossa insensibilidade, sadismo ou ânsia de assujeitar o outro.
Lembremos o caso da menina de 10 anos estuprada ao longo de anos, cuja gravidez gerou comoção nacional: quem se prestaria a dizer que ela era conivente com o seu violador pois desfrutava do abuso? Infelizmente, tivemos a nauseante experiência de ouvir essas e outras opiniões indecentes —as quais provavelmente jamais teríamos acesso— disseminadas em fóruns virtuais.
Para manter a vida em sociedade é necessário medir as próprias palavras, evitar a licenciosidade dos preconceitos e a disseminação de injustiças. O filósofo popstar Slavoj Zizek vem alertando há décadas para a conspurcação e diminuição do espaço público pela incontinência do gozo privado.
Ao encontrarem eco para suas falas indefensáveis, muitos passaram a execrar e a perseguir discursos que apresentassem o contraditório, fortalecendo crenças, ao mesmo tempo em que criavam laços de reconhecimento e afeto entre seus pares.
As vozes dos pesquisadores, contraintuitivas, foram abafadas pelo coro do senso comum alçado à categoria de verdade inconteste. E, a depender da simples percepção, a Terra é plana e o Sol gira à sua volta.
Já no processo de uma análise, na qual a instrução é de que digamos tudo o que vier à mente, resistimos a falar livremente. O que está em jogo aqui?
Quando o psicanalista ouve da boca do paciente a afirmação de que a criança estaria gostando de ser abusada, sabe que o sujeito está falando de si mesmo, revelando seu próprio gozo recalcado. Em análise, não há coro à fala do sujeito, pois o analista só intervém com a finalidade de fazê-lo se escutar. Diante do embaraçoso silêncio, o paciente se vê compelido a justificar o fundamento do que diz, o que fará com que assuma eticamente um lugar perante suas fantasias. Não há obscenidade, porque essa é a cena que a análise visa trazer à luz e esta é a condição para consegui-lo. Na análise a fala é alçada à dignidade de um ato de total responsabilidade do locutor.
A arte é outro lugar privilegiado, no qual tudo pode ser dito com a finalidade de promover a autorreflexão, jamais a opressão do outro. Mas o que faz o "honestopata", que morre e mata pela boca? Vê na arte a obscenidade que recusa a ver em si mesmo. O cancelamento de quadrinhos nos quais personagens são gays, é um dos exemplos mais comuns.
A coragem não reside em falar tudo quem vem à cabeça, mas em escutar de onde emergem nossas falas e o que elas dizem sobre nós. A covardia é a grande "qualidade" do "honestopata", que pede desculpas por medo de retaliação sem sequer saber pelo quê.
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