Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Não se pode falar tudo

Por que a fala sem censura, tão difícil em análise, jorra no espaço público?

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Em análise, a regra básica é falar o que vier à cabeça. Mas, como Freud descobriu assim que abriu mão da hipnose, ela esbarra em um impedimento: a autocensura. O trabalho analítico se dá na tentativa de suplantar as resistências, entre elas a que nos impede de falar tudo. Além disso, a própria linguagem é incapaz de nomear a vida. Seguimos analisando, então, assumindo esses dois impossíveis.

Já no âmbito público, o gozo da fala solta e inconveniente virou uma qualidade premiada com seguidores, projeção, dinheiro. Seria uma contradição?

Homem com boca fechada por mordaça
Por que a fala sem censura, tão difícil em análise, jorra no espaço público? - Unsplash

As redes virtuais permitiram que as pessoas emitissem as opiniões que guardavam para si por medo de retaliação ou falta de oportunidade. O cidadão comum passou a encontrar ecos da própria voz mundo afora, onde havia outros que pensavam como ele. Se, por um lado, isso permitiu que sujeitos oprimidos fossem ouvidos e saíssem da invisibilidade, por outro, promoveu as ideias mais sinistras. Aquelas que revelam nossa insensibilidade, sadismo ou ânsia de assujeitar o outro.

Lembremos o caso da menina de 10 anos estuprada ao longo de anos, cuja gravidez gerou comoção nacional: quem se prestaria a dizer que ela era conivente com o seu violador pois desfrutava do abuso? Infelizmente, tivemos a nauseante experiência de ouvir essas e outras opiniões indecentes —as quais provavelmente jamais teríamos acesso— disseminadas em fóruns virtuais.

Para manter a vida em sociedade é necessário medir as próprias palavras, evitar a licenciosidade dos preconceitos e a disseminação de injustiças. O filósofo popstar Slavoj Zizek vem alertando há décadas para a conspurcação e diminuição do espaço público pela incontinência do gozo privado.

Ao encontrarem eco para suas falas indefensáveis, muitos passaram a execrar e a perseguir discursos que apresentassem o contraditório, fortalecendo crenças, ao mesmo tempo em que criavam laços de reconhecimento e afeto entre seus pares.

As vozes dos pesquisadores, contraintuitivas, foram abafadas pelo coro do senso comum alçado à categoria de verdade inconteste. E, a depender da simples percepção, a Terra é plana e o Sol gira à sua volta.

Já no processo de uma análise, na qual a instrução é de que digamos tudo o que vier à mente, resistimos a falar livremente. O que está em jogo aqui?

Quando o psicanalista ouve da boca do paciente a afirmação de que a criança estaria gostando de ser abusada, sabe que o sujeito está falando de si mesmo, revelando seu próprio gozo recalcado. Em análise, não há coro à fala do sujeito, pois o analista só intervém com a finalidade de fazê-lo se escutar. Diante do embaraçoso silêncio, o paciente se vê compelido a justificar o fundamento do que diz, o que fará com que assuma eticamente um lugar perante suas fantasias. Não há obscenidade, porque essa é a cena que a análise visa trazer à luz e esta é a condição para consegui-lo. Na análise a fala é alçada à dignidade de um ato de total responsabilidade do locutor.

A arte é outro lugar privilegiado, no qual tudo pode ser dito com a finalidade de promover a autorreflexão, jamais a opressão do outro. Mas o que faz o "honestopata", que morre e mata pela boca? Vê na arte a obscenidade que recusa a ver em si mesmo. O cancelamento de quadrinhos nos quais personagens são gays, é um dos exemplos mais comuns.

A coragem não reside em falar tudo quem vem à cabeça, mas em escutar de onde emergem nossas falas e o que elas dizem sobre nós. A covardia é a grande "qualidade" do "honestopata", que pede desculpas por medo de retaliação sem sequer saber pelo quê.

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