Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente

Agora só vou com mulher

Durante exame de ultrassom da carótida, técnico resolveu a apoiar o braço sobre meu seio

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Compartilho, para escrutínio público, uma experiência particular, que lamento não ser única. Munida de pedido médico, me dirigi a um dos melhores laboratórios do país para um exame de carótida. Trata-se de avaliar o calibre das artérias pelo ultrassom, passando um aparelho sobre o pescoço. Nada poderia ser mais simples, indolor e rápido. Mas eis que o técnico que conduziu o exame resolveu que para fazê-lo caberia apoiar o braço sobre meu seio. Roçar no mamilo para fazer um exame de carótida equivaleria a roçar na glande masculina para fazer um ultrassom de abdome: ambas são manobras tecnicamente erradas e inapropriadas.

O profissional teve um comportamento abusivo? Sim.

Mas de nada adianta a afirmação se não clarearmos o sentido desse termo.

Sala de ultrassom
Sala de ultrassom - 24.ago.2010 - Thiago Vieira/Folhapress

O abuso —no caso sexual— implica em obter prazer usando o corpo do outro a sua revelia, ou ainda, explorando a vulnerabilidade, a subalternidade ou a ingenuidade da vítima. Trata-se de uma experiência de gozar com o poder sobre o outro e não apenas com o roçar de peles, penetração ou troca de fluídos. Ele é tão mais poderoso se for cercado de testemunhas que endossam por omissão ou encorajamento o lugar do abusador. Portanto, não se trata absolutamente de avaliar se havia algum desejo particular pelo abusado, mas do exercício de um poder.

Uma das grandes distorções da formação médica é supor que paciente deve se submeter inteiramente ao profissional que, afinal, está ali para "salvar" sua vida. É a partir dessa premissa de super poderes de um lado e de submetimento compulsório do outro que a perversão corre solta.

Ao ignorar acintosamente o erotismo dos seios de uma mulher, o médico está dizendo que ela é uma carótida a ser examinada, uma peça de anatomia e não um sujeito inteiro como ele mesmo se supõe.

Sugiro também refletir a partir do lugar do paciente. Poderia ter desfrutado da experiência, uma vez que o toque é supostamente excitante? Sem chance. O gozo só funciona dentro do paradoxo de "se fazer de objeto", ou seja, como sujeito que "se faz de" objeto. Se me faço de objeto, me faço desde o lugar de sujeito que escolhe fazê-lo. Fato que algumas feministas que arbitram sobre o que as mulheres devem ou não fazer com seus corpos insistem em ignorar. Aliás, nada mais bizarro do que uma feminista palpitando sobre o uso que outras mulheres fazem do próprio corpo.

Neste jogo, ao contrário das práticas consensuais de sadomasoquismo nas quais o consentimento está colocado de saída, só goza quem faz o outro de objeto.

Não fui consultada, não concordei, então, não me coube outro papel senão de corpo de mulher à disposição do exercício de um poder masculino.

Em outra ocasião, presenciei solução similar, mas com uma nuance mais neurótica do que perversa, para o dilema do exame dos corpos. Um médico da mesma instituição resolveu provar em ato que ultrassom vaginal é totalmente anódino. Em sua técnica a mensagem era clara: negação absoluta do fato de que ele estava no escurinho da sala na qual são feitos exames de imagem, enfiando um objeto digno de um sexshop, devidamente recoberto com uma camisinha e besuntado de gel, dentro da vagina de uma mulher. O tratamento foi brutal para que ficasse bem claro que não havia nada de erótico ali. Afinal, às vezes, uma vagina é apenas uma vagina (contém ironia).

Resultado: enquanto a formação médica for esse show de horrores misógino e militar que sabemos que é, vou fazer minha aposta nas médicas mulheres. Peço desculpas a amigos médicos a quem admiro e cujo trabalho vai na contramão do exposto acima. Sei também que existem médicas totalmente identificadas com o machismo ou com o sadismo, mas prefiro correr o risco.

Aos que se sentirem injustiçados, sugiro que lutem contra a misoginia desde a formação de suas colegas, que promovam a representatividade política delas nas instituições e que tratem seus problemas ligados ao poder e ao sexo em análise.

De resto, só posso desejar que esses médicos manipulem seus aparelhos bem longe de mim.

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