Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Descrição de chapéu Mente

O que um médico que atendeu as crianças de massacre no Uvalde pode nos ensinar

O horror não é fruto de uma violência individual, mas sim o esgarçamento do tecido social

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Poucas vezes ouvi um relato tão surpreendente de uma experiência diante do horror. Trata-se da fala do doutor Ronald Stewart entrevistado para um podcast do jornal The New York Times. O episódio vem na sequência de reportagens sobre o massacre em Uvalde, Texas, no qual 19 crianças e 2 adultos foram assassinados a sangue frio por um jovem de 18 anos.

Memorial das vítimas do massacre que matou 19 crianças e dois adultos em uma escola de Uvalde, no Texas, no mês passado - Lisa Krantz - 11.jun.22/Reuteres

Ronald Stewart é cirurgião há 40 anos, com larga experiência no tratamento de ferimentos por armas de fogo e já havia atendido vítimas do massacre na Primeira Igreja Batista de Sutherland Springs, Texas, no qual 26 pessoas foram mortas. Depois de descrever com precisão o tipo de arma capaz de realizar o estrago observado nas crianças que chegavam —revelando a familiaridade com esse tipo de situação— ele é questionado sobre o que lhe é mais memorável daquele dia. E é aí que a resposta parece abrir uma dimensão nova para o ouvinte. Contrariando as expectativas, Stewart descreve a coisa mais linda que conhece no mundo.

Pessoas juntas, trabalhando em equipe, tentando atender uma criança no momento em que ela mais precisa, cena que ele compara a uma sinfonia, na qual cada músico faz sua parte, e com a fotografia, seu hobby em busca de beleza no mundo. O depoimento é carregado de uma emoção que ele não é capaz de conter e da qual o ouvinte tampouco sai ileso ao ouvir.

É sabido que em momentos de extrema violência a atenção tende a se fixar em pontos periféricos na busca por preservar a consciência, ao mesmo tempo em que a afasta da vítima do horror. Stewart está lá voluntariamente exercendo um trabalho para o qual se dedicou a vida toda e que implica justamente em sustentar a consciência, a inteligência e a capacidade de responder prontamente a cenas a qual a maioria de nós sucumbiria pela emoção e pela identificação com as vítimas.

Mas onde ele sustenta, digamos, sua lucidez?

É na sua equipe que ele se atém para transcender o traumático do acontecimento. Algo como: não estou aqui sozinho, posso confiar na dedicação e no amor dos que estão comigo enfrentando a dor, tenho com quem compartilhar a tristeza de perder e a alegria de ajudar. Nenhuma lição pode ser mais preciosa nessa hora. A saída que ele encontra e que pode nos servir de inspiração, é o apoio mútuo, a confiança e a dedicação. Nada mal para quem, como nós, têm um país pela frente para reconstruir.

A segunda fala do médico é igualmente impactante, momento no qual ele descreve a pior coisa da qual se lembra naquele dia. Não se trata, em absoluto, dos corpos dilacerados pelas balas, como poderíamos imaginar, mas de ouvir as crianças contando, sem serem perguntadas, o que elas haviam acabado de testemunhar. Momento no qual aquilo que definimos como infância —tempo de proteção da criança antes da entrada no mundo adulto— acaba irremediavelmente.

Não se trata de um acidente — o que já seria intenso—, mas de testemunharem aquilo que nem os adultos são capazes de explicar: a mais pura e injustificável violência. Fato que as crianças pobres, pretas e periféricas do Brasil conhecem de forma sistemática e não episódica, como as estadunidenses. Por isso afirmamos que a infância é um privilégio social e racial e não uma condição garantida pela faixa etária.

O horror não é fruto de uma violência que se expressa num ato individual, mas o esgarçamento do tecido social, único capaz de nos ajudar a conter o que é disruptivo em nós. Assim também a esperança só se sustenta a partir de metas coletivas e não de salvadores da pátria, que se devem nos servir de inspiração, não podem nos eximir de nossa responsabilidade com os inocentes.

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