Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente

A escola e as más companhias

A internet não cria nosso pior, mas ela o arregimenta de forma descomunal

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O medo de que os filhos estejam circulando com más companhias é um clássico que ocupa a mente de pais e mães de todas as gerações.

Uma das razões é óbvia: a criteriosa versão do mundo que os responsáveis se esmeram em apresentar à criança será confrontada com opiniões e fatos, relativizando a influência dos pais. E, a menos que eles estejam preparando os filhos para viverem confinados no âmbito doméstico, é melhor que os responsáveis estejam abertos para a entrada seletiva dos outros na vida da criança.

A outra razão dessa preocupação dos pais é um pouco mais pragmática. Trata-se de tentar controlar o círculo de contatos da criança com a finalidade de manter o status familiar. Daí que brincar com crianças de outro estrato social, que tenha outros hábitos, credos ou raças, pode ser tão interditado para a criança quanto conviver com um serial killer. Uma lástima.

A paranoia é uma marca da parentalidade da nossa época, tanto no que diz respeito à preocupação dos pais em relação ao seu próprio desempenho na função como no que diz respeito ao contato com estranhos. O deslocamento dessa preocupação tem sido tão grande que os professores se tornaram objeto de delírios persecutórios e de perseguição. Fato inédito para as gerações anteriores, que tinham no laço social e, principalmente, na escola uma aposta que tornava a vida em sociedade mais palatável.

Absolutamente desautorizados diante de um suposto saber da parentalidade "positiva e correta", pais, mães e responsáveis são manipulados de forma inédita. A tentativa de tudo controlar, predizer e garantir releva o furo que se busca encobrir. Enquanto buscam salvar os filhos, esquecem que a escola, como bem lembrou a professora Talma Vinha no podcast "Assunto", é um lugar de proteção. (Não raro também protege a criança de famílias violentas e abusivas.)

Cabe aos responsáveis peneirar a entrada do mundo para proteger as crianças. Mas como? De forma pontual: do eventual —e raro— encontro da criança com um adulto mal-intencionado. De forma disseminada: das redes sociais a qual todas as crianças têm acesso todo dia, o tempo todo.

É no acesso irrestrito e sem mediação das redes sociais que todas as crianças, sem exceção, têm encontrado o outro que pais e mães tanto temem. A famosa deep web, aquela na qual com alguma artimanha se podia alcançar o chorume das redes sociais, não é mais "deep". Com interesses puramente financeiros, big techs resolveram fazer vista grossa para a circulação dos conteúdos mais disruptivos e odiosos que somos capazes de produzir.

(Sugiro a minissérie sueca "Playlist", que trata da criação do Spotify. O final, no qual o dono revela a sua motivação para continuar a operar num dispositivo que comprovadamente prejudica os artistas que ele tanto ama, me assombra até hoje. Assistam. É uma boa reflexão para quem se pergunta como esses caras colocam a cabeça no travesseiro sabendo o estrago mundial que causam.)

Se a ética não nos servir de baliza, que nos sirva o código do consumidor, como lembra o advogado Ronaldo Lemos no podcast "Café da Manhã".

A internet não cria nosso pior, mas ela o arregimenta de forma descomunal e inédita. Seu efeito é ainda mais potencializado em sujeitos psiquicamente vulneráveis como homens brancos, com tendências a comportamento desajustado ou violento. Isso é coerente com o fato de que discursos destrutivos misóginos e supremacistas servem para mascarar fragilidades que deveriam ser assumidas, responsabilizadas e tratadas.

O coro da internet é aquele que, diante do jovem no parapeito do prédio cogitando se jogar, grita "pula!". Pais, mães e responsáveis imploram que não o faça. Que vozes queremos que alcancem nossos filhos?

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