Vinicius Torres Freire

Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

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Vinicius Torres Freire
Descrição de chapéu Auxílio Brasil

Após anos de ócio destrutivo, Bolsonaro fura teto, causa mais inflação e arrisca recessão

Improviso para lidar com problema óbvio da fome causa baderna na economia

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O preço da sua comida, da sua gasolina ou do seu diesel vai aumentar ainda mais por causa da besteirada mais recente de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e de seus amigos do centrão. Mas isso ainda pode ser desgraça pouca. Essa gente está encomendando uma recessão para 2022: juros ainda mais altos (Selic a 11%, 12%?), mais fome, pouco emprego. Muito difícil crescer além de 1%, com muita sorte. Na prática, na renda (PIB) per capita, é crescimento zero ou quase isso.

A ignorância, a incompetência, a perversidade e o ócio destrutivo de Bolsonaro criaram uma situação quase impossível de resolver sem danos colaterais graves. É preciso dar alguma renda mínima a pessoas cronicamente muito pobres ou que na miséria caíram por causa da alternância de recessão e estagnação em que vivemos desde 2015, piorada, claro, pela epidemia. Problema ainda mais difícil para um governo endividado de um país que não cresce, com credores indóceis.

O que fez Bolsonaro até agora? Deixou que a coisa explodisse. Inventou uma gambiarra de última hora, uma mutreta desenhada "nos joelhos", para não dizer outra coisa. Para os donos do dinheiro, que são também o grosso dos credores do governo, trata-se de um sinal de que a dívida pública vai crescer sem limite.

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília - Ueslei Marcelino - 20.out.2021/Reuters

Um resultado dessa baderna é visível por exemplo no Ibovespa, que despenca. A menção ao Ibovespa é apenas um exemplo para provocar. Se a leitora acha que essa queda é assunto apenas de quem tem dinheiro em ações, está enganada. Esse é apenas um aspecto de um problema de fundo, uma desconfiança no crescimento futuro do país e na capacidade do governo de pagar sua dívida sem inflação. Ou seja, é um problema de descrédito: de falta de crédito, o que se traduz em cobrança de taxas de juros mais altas para financiar o governo e tudo mais no país, além de fuga de dinheiro (dólar mais caro). Juro em alta significa desvalorização geral dos ativos.

O problema estava evidente desde 2020. Em agosto do ano passado, com a popularidade em alta, Bolsonaro largou o assunto para lá. De março de 2020 a setembro deste 2021 dedicou-se a promover o golpe, a agravar o morticínio da epidemia e a suas manias reacionárias ou imbecis (armas, nióbio, trânsito selvagem, Cancun em Angra dos Reis etc.).

Com a popularidade nas mínimas e sem ter o que apresentar na campanha eleitoral, resolveu agora chutar o pau do teto de gastos. Como se sabe, trata-se do limite de despesa do governo federal, inscrito na Constituição em 2016. Desde 2017, o gasto orçado para um certo ano pode apenas ser reajustado pela inflação do ano anterior (mais precisamente, pela inflação acumulada em 12 meses até o mês de junho do ano anterior).

Pela Constituição, a regra de reajuste do teto poderia ser revisada em 2026. Na prática, qualquer governo poderia propor uma revisão quando quisesse, desde que tivesse votos no Congresso. A questão maior era administrar a reação de credores da dívida pública e investidores em geral no país.

Bolsonaro e Guedes devem propor uma mudança na fórmula de reajuste do aumento de despesas. As datas de cálculo do reajuste e os diferentes índices que indexam a despesa pública de fato causam problemas. Em tese, seria uma ideia razoável. No caso, é apenas um casuísmo, improvisado para que se possa aumentar o limite de gastos no ano eleitoral de 2022. Um aumento bastante para pagar o substituto piorado do Bolsa Família, o "Auxílio Brasil", e as emendas paroquiais dos parlamentares, sem que se faça cortes em qualquer outra parte do Orçamento.

Além da gambiarra do teto, o governo deve inventar uma moratória (calote provisório) de parte do que deve em precatórios em 2022. Deve deixar de pagar uns R$ 50 bilhões dos quase R$ 90 bilhões da conta do ano que vem.

É possível cortar outras despesas no Orçamento? É quase impossível. Afora despesas obrigatórias, não sobrou quase nada para talhar, a não ser que se paralise o governo em vários setores. Ciência e tecnologia estão à míngua, a taxa de investimento (em obras, equipamentos etc,) é a mínima em décadas etc. Sobram para cortar os gastos com Previdência, benefícios assistenciais e salários, em geral cerca de 90% das despesas federais.

Seria possível fazer uma mudança no teto de gastos, de modo estudado e organizado. Com a epidemia, o teto ficou de vez inviável, ainda que não fosse estourado. Essa alteração daria em tumulto grande, de qualquer modo. Mas, feita de modo competente e crível, acompanhada de outras mudanças importantes na economia e da cobrança de (mais) impostos, talvez passasse sem danos mutilantes. Nada disso aconteceu nem acontecerá, pois o governo é incompetente como executivo, orientado que é pelo projeto de tirania de um ignorante perverso, e incapaz na política. Guedes, além de incapaz, agora foi reduzido a um dois de paus pelo centrão, que assumiu o governo de vez, pois Bolsonaro precisa pagar a conta para evitar o impeachment.

O teto de gastos está sendo especialmente avacalhado desde 2019, quando Bolsonaro, por exemplo, arrumou um dinheirão para a Marinha fazer navios de guerra. Desde que foi inventado, uma consideração sensata da economia, da política e da sociedade brasileira diria que era inviável.

Por que, aliás, é preciso haver algum teto de gastos? Desde 2014, o governo federal gasta mais do que arrecada, mesmo desconsideradas as despesas com juros da dívida, que cresce sem limite. Sem poder cortar despesas de imediato, a fim de ter um superávit e, assim, evitar a alta descontrolada da dívida, inventou-se a solução do teto. A despesa pararia de subir. Com o país crescendo e com algum aumento de receita, tanto o déficit quanto a despesa federal diminuiriam (em relação ao PIB, ao tamanho da economia). Seria uma transição gradual para o superávit e o controle do crescimento da dívida. Era uma espécie de "moratória" de superávits.

Não deu certo. O país não cresceu mesmo antes da epidemia. As despesas obrigatórias continuaram a aumentar, como previsto etc. Ainda mais grave, o bloco de poder "liberal", no comando desde 2016, acabou nas mãos de Bolsonaro, que vai acabar de explodir a coisa toda.

Vai tudo explodir de uma vez? Não. Vai ser uma ruína lenta, com mais suspiros de dor, com muitas sequelas. Parabéns para liberais e para empresários amigos de "reformas" (aquelas boas para o bolso).​ ​

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