Neste ano, 83% dos mortos de Covid tinham 60 anos ou mais em São Paulo. Durante a epidemia inteira, foram 69%. É um número parecido com aquele da gripe/pneumonia no estado: 85% dos mortos por essas doenças em 2019 e 2020 tinham 60 anos ou mais (ainda não há dados de 2021).
Como se fosse uma caricatura da profecia do monstro no poder, a Covid se tornou uma nova grande gripe assassina.
Ficamos acostumados à Covid, a suas mortes e sequelas, assim como as instituições do país se acostumaram a Jair Bolsonaro. A destruição continua, mas faz parte da paisagem. Assim também nos acostumamos à pobreza. No ano que vem, vamos para o DÉCIMO ano sem crescimento. Na verdade, ainda seremos muito mais pobres do que em 2014.
No caso da peste, nos acostumamos, por ora, a 250 mortes por dia no Brasil; a 69 por dia no estado de São Paulo. Nesse ritmo, a epidemia terá matado 700 mil pessoas no país às vésperas do segundo turno da eleição. Ainda haverá alguma comoção com a efeméride do número redondo de horror?
Talvez não, até porque pode haver catástrofe concorrente, como o ápice do golpe ora em curso. Mas, no que diz respeito à epidemia, talvez não se preste atenção porque a morte por Covid se tornou invisível, por assim dizer.
A doença mata ainda mais os mais velhos, "idosos". Para nossa desumanidade crescente (ou costumeira?), a vida abreviada dos mais velhos parece causar menos comoção, como se inevitável.
Considerando os números das demais causas de morte em 2019 (último ano antes da epidemia), a Covid seria o terceiro mal mais mortífero no estado de São Paulo, para o total da população. Por dia, morriam cerca de 159 pessoas de câncer e 87 de doença isquêmica do coração (artérias entupidas, que podem levar ao infarto). Neste ano, até agora, morreram 85 pessoas por dia de Covid.
Gripe/pneumonia mataram 63 por dia em 2019; doenças cerebrovasculares, 59,5. Aids, 5. Suicídios, 6,5. Homicídios, 9. Acidentes de transporte, 14. Os números são bem parecidos com os de 2020.
Pessoas mais jovens são a maioria dos assassinados, das vítimas de homicídio: cerca de 90% têm entre 15 e 49 anos. Morrem muito mais cedo e de modo muito mais gritante do que os velhos que se vão mais quietamente por causa de gripe, pneumonia ou Covid. Mas é tudo intolerável.
A morte por Covid se tornou rotina também porque, ao menos por ora, não há muito o que fazer a não ser o que tem de ser feito: vacinas, máscaras, ventilação, campanhas de esclarecimento, o que faz tempo se sabe –mas cada vez menos se faz. É preciso viver com a doença, por falta de alternativa, mas não é preciso nos rendermos a mais um motivo de morticínio grande: a terceira causa de morte mais comum em São Paulo, vamos repetir.
Apesar das trevas, sobrou algo do Brasil que presta. O país vai relativamente bem no ranking de vacinação. No caso de duas doses, estamos à frente de Itália, França, Reino Unido e Alemanha. No caso das demais doses, de reforço, nem tanto, mas não muito longe da França e bem à frente da vergonha dos Estados Unidos.
O número diário de mortes tem crescido por aqui, mas é ora menor do que no Reino Unido, Itália, EUA e França, por exemplo (mortes por milhão de habitantes), embora essas comparações sejam bem difíceis, por diferenças sociais e sazonais. Não fomos apenas nós que nos acostumamos à Covid.
Não pode ser. De resto, a resignação ou a indiferença quanto à morte se casam com outros conformismos ou friezas. Quantas serão as vítimas de sequelas graves da doença? Tantas quanto os 700 mil mortos? O dobro? A metade? Seja quanto for, é um desastre. Ainda nem nos perguntamos quantas são e como sofrem essas pessoas.
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