Vladimir Safatle

Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

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Vladimir Safatle

O dia da infâmia

A democracia não aceita que o ocupante da Presidência atente contra ela

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Dificilmente, poderia ser mais didático. Em uma comissão feita na Câmara dos Deputados, o senhor ministro da Educação é confrontado pela deputada Tabata Amaral sobre a ausência gritante de um plano estratégico e de descrições mínimas sobre projetos, responsáveis, cronogramas, resultados esperados e critérios de avaliação. 

O ministro é questionado sobre números elementares da área no país. Sem ser capaz de dizer nada concreto, ele remete aos seus secretários, que mudam ao sabor do vento e não duram nem sequer duas 
semanas. Se alguém precisava de uma imagem final de como os integrantes do governo atual não estão dispostos a governar (e nem seriam capazes, se quisessem), essa imagem está agora disponível a todos.

Mas não deixa de ser sintomático que, praticamente no mesmo momento da confissão do vazio educacional, o senhor Jair Messias continuasse sua guerra pessoal contra o presidente da Câmara. Pare de brincar e comece a governar, disparou o deputado contra o Planalto, frase logo revidada por acusações de “irresponsabilidade”.

Ilustração
Marcelo Cipis/Folhapress

Alguns podem achar que isso é uma inabilidade vinda do “espírito intempestivo” do ocupante da Presidência. Mas não. É uma lógica de governo. Trata-se de vender a ideia de que as estruturas da “velha política” estão a impedir que o novo governe, mesmo que o novo não seja capaz de montar uma planilha elementar de ações com cronograma. 

Trata-se de dizer que as práticas fisiológicas da antiga Nova República estão a tentar sufocar a revolução em marcha, mesmo que o partido do “novo” comece a explodir a céu aberto com casos de corrupção e antigas práticas de malversação de fundos, mesmo que os ocupantes do Planalto exalem um cheiro 
insuportável de milicianos.

Essa tática não nasceu hoje. Ela serve para esconder exatamente o que o senhor ministro da Educação mostrou —a saber, que, mesmo se quisesse, o governo não saberia governar.

Na falta do que fazer, sobra produzir o caos para vender a ordem. Dizer que o Estado está cindido entre as forças da novidade e as forças da reação para: a) justificar a paralisia carnavalesca do governo; b) preparar um expurgo final.

Nesse sentido, não são uma bravata a proposição criminosa de comemorar a ditadura de 1964 e as declarações sórdidas de que foram “probleminhas” as torturas, o terrorismo de Estado, a ocultação de cadáveres, os estupros, os assassinatos, a censura, o empastelamento de jornais.

Erra quem acha que isso é acessório, assim como erra quem acha que o racismo, o sexismo e o preconceito generalizado são manobras diversionistas. Isso é o essencial, pois se trata do verdadeiro horizonte de governo.

Essas não são afirmações passadistas, de quem está com os olhos fixos no passado. Elas são declarações que miram o futuro, que visam impedir a emergência dos que podem nos tirar dessa situação e inventar uma democracia que nunca existiu. Elas visam anunciar o que está sendo preparado e profundamente desejado pelos ocupantes do poder.

Em uma democracia, governantes que conclamam a população a festejar uma ditadura de assassinos, de 
corruptos e de torturadores que tomou o seu próprio país por 20 anos seriam objetos imediato de destituição.

A democracia não aceita que o ocupante do lugar da Presidência atente tão abertamente contra ela, saudando aqueles que a destruíram. 

No Brasil, que parece apenas esperar o golpe de misericórdia para institucionalizar a sua situação autoritária de fato, colocações dessa natureza só podem ser barradas mostrando qual é o preço de uma nova ditadura, quantas vozes nas ruas ela precisará calar, contra quanta violência legítima, vinda do direito fundamental de resistência, ela precisará responder. 

O dia 31 de março sempre será, na história deste país, o dia da infâmia e da vergonha. Se alguém esqueceu, nós podemos lembrá-lo.

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