Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes

Quem acha que pobre é bandido também é responsável pela morte de Genivaldos

Tese de que criminosos e fascistas não devem ser tolerados esbarra no problema de como identificá-los

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Bolsonaristas estão convencidos de que um dos grandes problemas nacionais, o crime, se resolve prendendo ou matando "os vagabundos". Matar é melhor, pois evita que a Justiça mande soltar os criminosos ou que os homens de bem tenham que sustentar bandido na prisão —dizem-no com todas as letras.

A tese, sedutora para muitos, enfrenta além de tudo um problema prático: como identificar por sinais seguros que o sujeito que está diante de mim é um delinquente?

Policial rodoviário federal após operação na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, em fevereiro, quando 8 pessoas foram mortas - Tércio Teixeira - 11.fev.22/Folhapress

Do outro lado, alguns repetem, orgulhosos de frase tão lacradora, que, "se há dez pessoas em uma mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma se levanta, há onze nazistas na mesa". Não estão falando dos anos 1940 na Alemanha, mas do Brasil, hoje.

Na verdade, chegamos ao ponto de alguns verem nazistas e fascistas por todos os lados, como os olavistas e outras subespécies de bolsonaristas se veem cercados de comunistas. Mas como conseguem ter certeza de que o último a se sentar à mesa é de fato nazista, comunista ou fascista?

O problema dessas perspectivas fica mais sério pois pretendem transformar em obrigação moral a punição do Mal (assim, maiúsculo). Impõe-se uma atitude contra "a bandidagem", os fascistas, os nazistas, os comunistas.

Entretanto, para que as pessoas decentes adotem o comportamento requerido —ficar longe deles, denunciá-los, enfrentá-los ou simplesmente eliminá-los da face da Terra— seria necessário poder reconhecê-los. Como? O bandido dos bolsonaristas e o fascista da esquerda não são na prática entidades naturais e distintas, caminhando na rua com crachá, farda ou qualquer outro signo indiscutível. Ninguém tem "fascista" ou "bandido" escrito na testa, para pesar de muitos.

Isso, contudo, não desencoraja os projetos de "fogo nos fascistas" ou "pau na bandidagem".

Há uma função psicológica envolvida, claro, posto que a certeza da identificação do Mal apazigua a consciência, apaga os escrúpulos, torna firme a mão que executa a sentença.

Fracos e de caráter duvidoso seriam, ao contrário, os que consideram ser impossível um trajeto seguro entre concordar que criminosos devem ser punidos ou que fascistas não devem ser tolerados e a certeza de que a pessoa que está diante de nós é um delinquente ou um nazista. No mundo seguro da crença, não há espaço para céticos e agnósticos, muito menos para apóstatas da fé verdadeira.

Por outro lado, quando se pede para ver os critérios usados para a identificação concreta não entregam mais que clichês, preconceitos, sentimentos e uma vontade imensa de calar vozes divergentes.

No caso da identificação dos "vagabundos", resolveu-se a dificuldade por meio de um duplo procedimento.

Primeiro, dá-se ao agente armado a prerrogativa de uma semiose definitiva: observando os sinais emitidos pelo suspeito, o policial deduz, infere, conclui quem é a pessoa que lhe está diante, se cidadão ou marginal. O código por atrás da operação semiótica, que correlaciona signo e significados, no entanto, foi formando com base no preconceito social segundo o qual "se parece pobre, provavelmente é bandido".

Segundo, o pessoal que considera "matar bandido" uma missão moral elevada encontrou um método infalível para não errar na identificação de marginais: se a polícia mata, por tiro ou asfixia, é certamente um malfeitor. Não é que a polícia mate por ser delinquente, é delinquente porque a polícia matou. Fim da discussão.

Identificar fascistas, nazistas e comunistas deveria ser ainda mais complexo considerando tratar-se de uma sociedade pluralista e com uma margem consideravelmente alta de liberdade de opinião. Mas não. Os videntes nos confessam com naturalidade que distinguem claramente os comunistas, fascistas e nazistas que os céticos nem sequer conseguem ver.

Claro que há realmente criminosos, fascistas e nazistas entre nós, em um número crescente e ameaçador. Entendo o medo, a pressa, a angústia. Há poucas coisas, porém, menos perniciosas que uma sociedade em que o pânico leva à paranoia, aos julgamentos automáticos, às autorizações ao ódio contra grupos específicos.

Os que veem bandidos em cada pobre são também responsáveis pelos Genivaldos da vida, torturado e morto pelo crime de se comportar no trânsito como o presidente da República, só que com cara e jeito de miserável.

Os que se consideram sitiados por comunistas, nazistas e fascistas são responsáveis pela formação de uma geração inteira de fanáticos e autoritários, a própria materialização dos fantasmas que pretendem condenar. Analisar as consequências dessas premissas, contudo, tomaria um tempo que esse pessoal não tem, ocupado como está em denunciar e combater o Mal.

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