A grande pergunta que tenho ouvido em relação a Boris Johnson é se é correto caracterizá-lo como um populista autoritário nos moldes de Donald Trump ou Matteo Salvini.
Como Trump e Salvini, Boris faz promessas simplistas, incentiva o culto a sua personalidade e adora desancar a elite (apesar de fazer parte dela).
Diferentemente dos dois, ele cultiva uma imagem comparativamente liberal em questões sociais, ressalta seu amor pela erudição e acredita que o Reino Unido se beneficia de algumas formas de diversidade e imigração.
Cada lado parece ter algo para o qual apontar. Mas, se essa discussão parece inconclusiva, isso se deve em boa parte ao fato de se basear numa visão equivocada do que é o populismo.
Há populistas de todos os sabores ideológicos. Muitos, especialmente na Europa, são de extrema direita. Alguns, especialmente na América Latina, são de extrema esquerda.
O que todos têm em comum é a oposição ao pluralismo inerente a qualquer democracia representativa em funcionamento. Ao declarar que eles, e apenas eles, defendem o povo e o representam, os líderes populistas pelo mundo afora deslegitimam qualquer instituição que possa frear seu poder.
Nesse sentido, a decisão tomada por Boris de suspender o Parlamento definiu seu caráter de modo duradouro. Ao tentar impedir a Câmara dos Comuns de deliberar sobre o brexit, demonstrou que se vê como porta-voz mais legítimo da vontade de seus compatriotas do que a instituição encarregada dessa tarefa nos últimos três séculos.
Trata-se da agressão mais deslavada contra a democracia vista na memória viva do Reino Unido e uma das mais sérias já enfrentadas por qualquer país ocidental nesta era populista.
Quando David Cameron se propôs a “drenar a pústula” do euroceticismo, autorizando um plebiscito no qual os eleitores pudessem decidir pela permanência ou saída do Reino Unido da União Europeia, ele subestimou até que ponto os eleitores aproveitariam o referendo para manifestar sua desaprovação da classe governante.
E, como ninguém havia refletido seriamente sobre as consequências que teria uma vitória do voto pelo brexit, o referendo encerrava uma falha grave em sua redação, algo que assombra o país desde então: não estava claro que tipo de ação seria autorizada por um voto em favor da saída.
Desse modo o referendo armou um conflito entre a soberania popular e a parlamentar, algo sem precedentes na história britânica. Por um lado, foi manifestado o desejo popular claro de tirar o país da UE.
Por outro lado, uma assembleia representativa cuja maioria de membros era contrária ao brexit foi encarregada de entender e definir qual seria a cara do relacionamento futuro do Reino Unido com a Europa.
Na discussão amarga que se seguiu, os eurocéticos mais extremos aprenderam a explorar argumentos sobre a soberania popular que são devastadores para as instituições nacionais.
Quando um tribunal decretou que o Parlamento teria que aprovar qualquer acordo que a primeira-ministra Theresa May pudesse fechar com a UE, o jornal The Daily Mail publicou as fotos dos três juízes que tomaram a decisão sob a manchete “INIMIGOS DO POVO”.
Para resolver o impasse em que o país se encontra Boris promete defender a vontade do povo a qualquer preço —e se nomeou seu porta-voz principal.
O sistema político britânico é sólido demais para poder ser destruído por um só homem ou uma só crise política. A despeito de seu desdém evidente pela democracia parlamentar, Boris não é capaz nem está disposto a ir tão longe quanto populistas como o líder turco Recep Tayyip Erdogan ou o venezuelano Nicolás Maduro, que encarceraram dezenas de seus críticos e aboliram eleições livres e justas.
Mas, apesar de que seria um exagero enorme dizer que o ataque de Boris à Constituição britânica não escrita representa a morte da democracia parlamentar, está claro que ele está rompendo com normas vigentes para impedir as instituições democráticas de moldarem uma decisão de importância enorme.
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