Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo
Descrição de chapéu

Houve um tempo em que a gente não tirava dezenas de selfies na viagem

Estamos tão loucos para chegar a um lugar que nos esquecemos da experiência de visitá-lo

Bariloche, Mar del Plata, Pisa, Paris, Miami, Londres, Nova York, Marselha, Rio de Janeiro, Tucumã, Buenos Aires, desconhecido, desconhecido, desconhecido... Os lugares, quando identificados, são os mesmos.

Ilustração mostra um casal argentino cuja fotos de viagens viraram o livro  “Te Amo, Yo También”
Maíra Mendes/Folhapress

Mas em cada par de fotos, ora é ela que aparece —com seu casaco marrom com gola de coelho, seu vestido floral, sua caxemira de gola rolê, sua pantalona—, ora ele —com seu blazer bege longo, sua jaqueta de camurça, sua camisa de estampa geométrica, sua polo marinho.

Descobri esse casal numa viagem recente a Buenos Aires. Suas fotos foram reunidas num livro que encontrei na excelente loja da Fundação Proa, um oásis de arte contemporânea numa das áreas mais tradicionais da capital portenha: Caminito. 

“Te Amo, Yo También” (Ediciones Larivière) chamou logo a minha atenção com sua capa amarela e a foto de dois desconhecidos na praia de Mar del Plata. Mas o que encontrei em suas páginas foi algo ainda mais especial: uma lição de viajar.

Imagine que houve um tempo em que a gente não tirava dezenas de selfies para depois decidir qual postar na rede social. Há meros 20 anos, uma foto de viagem era algo estudado, não só porque era uma lembrança especial, mas porque custava caro também comprar a máquina, o filme e pagar pela revelação. 

Assim, cada registro era bem pensado. Como os momentos compartilhados desse casal, que acabaram virando um jogo de sedução.

Quem reuniu as fotos foi Maria Paz Crotto, depois de descobri-las sendo oferecidas numa conversa de Facebook.

De quem eram, ninguém sabia. Apenas uma delas vinha com um nome —a que marcava o aniversário de Carlos, em 1975. Nem todas tinham a localização clara (por isso tantos “desconhecidos” nas legendas). Mas o que importava para eles não era esse tipo de informação: era a possibilidade de dizer “eu estive aqui e você também”. 

Viajavam sozinhos, parece. Fora as pessoas que aparecem ocasionalmente no fundo (como a pintora de paisagens em Veneza), são eles os únicos personagens em destaque. Mas para que mais se apenas aquela companhia lhes bastava? Cada par de fotos traz deliciosos jogos de associação. 

A Torre Eiffel, por exemplo, está centralizada na de Carlos e mais deslocada na de sua esposa. Há um cantor por trás deles num parque em Mar del Plata, mas só na foto de Carlos você percebe que ele está gravando algo para a TV. Qual o verdadeiro contorno daquela catedral tão desfocada em Luján (Argentina)? Será que algum deles vislumbrava que as Torres Gêmeas não estariam mais lá 24 anos depois de posarem à frente delas? E que lindo imaginar que um vulcão em Neuquén “chegou” um pouquinho para a direita depois da foto com a mulher, só para sair melhor na foto com Carlos...

No fundo os cenários são irrelevantes. Em Paris, por exemplo, além da torre, o casal escolheu uma esquina bastante ordinária para posar. No calçadão de Copacabana, um Fusca vermelho chama mais a atenção que os mosaicos de Burle Marx. E ao lado de um bote salva-vidas, num barco em Marselha, eles se revezam indiferentes ao mar que quebra logo abaixo. O mais lindo é o que eles diziam sem palavras, só um para o outro, neste ou naquele canto do mundo. E essa foi a lição que tirei.

Tão loucos estamos para chegar a um lugar que não poucas vezes nos esquecemos de que somos nós que transformamos a experiência de visitá-lo. As torres —de Pisa, de Tóquio, Eiffel— vão estar sempre lá.

Assim como as praias, os barcos, as estradas, as calçadas, os parques. Mas somos nós chegamos e contamos lá nossa história. Assim como esse casal argentino fez com suas viagens.

Porque em cada foto “espelhada” que tiravam, estava inclusa uma declaração de amor. O que se repetia em cada imagem não era o fundo dela, mas a paixão deles, ao longo dos anos e sempre renovada. Com um simples “yo también”.

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