Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

Turista, com muito orgulho

Saia de braços abertos pelo mundo e seja o viajante que gostaria de receber

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Como um sonho mal resolvido, daqueles de que você acorda antes do desfecho supostamente feliz, há uma cena, entre as viagens que já fiz, que me volta à memória sempre que começo a sentir necessidade de viajar. É provável que eu já tenha esbarrado nela nesses quase seis anos de histórias de viagens que compartilho aqui com você —e, se for o caso de estar me repetindo, conto com seu perdão.

Fato é que a tal cena voltou forte nestes dias na minha imaginação. Em parte porque estou mesmo precisando de umas férias, que estavam programadas para este mês de junho, mas tiveram de ser adiadas para outubro (setembro, com sorte). Mas em parte também porque, nas duas últimas colunas que escrevi, percebi que estava olhando o prazer de viajar de um ponto de vista ligeiramente rabugento. E quis, digamos, me realinhar. 

Maíra Mendes

Influenciado por observações recentes, vi-me a criticar, quando não condenar, o comportamento às vezes predatório dessa espécie tão peculiar: os turistas. Espécie esta da qual, diga-se, faço parte. Aliás, como você. 

Comentei as “invasões bárbaras” em cartões-postais, que são troféus para viajantes ocasionais, como Barcelona e Amsterdã. E, ao reler minhas palavras, senti-me distante da minha própria paixão. 

Veio, então, com força, a tal imagem que citei no começo do texto: Bancoc, 2004, meu primeiro fim de tarde da segunda viagem que fazia à capital tailandesa. 

Andava solto pela vizinhança de Silom, sem planos, quando, virando a esquina da Si Lom 3 com a avenida que dá nome ao bairro (é meio confuso mesmo, bem-vindo a Bancoc!), o meu iPod —na época, tinindo de novo, e hoje esquecido no meu museu particular de traquitanas do passado— tocou, na função aleatória, “King Street”, de um grupo jamaicano dos anos 1960, The Soulettes.

Você tem que ser fã hardcore de reggae para conhecer isso. Eu mesmo não sou: escutei-a uma vez, por acaso, enquanto perambulava pelas estantes da extinta Tower Records de Londres, em Piccadilly.

O DJ da loja tocou a faixa, um dos destaques de uma compilação, então recém-lançada, e fiquei tão enlouquecido que fui até ele perguntar do que se tratava —e comprei imediatamente o CD.

Não é uma canção que fala de viagem. Tampouco me lembra uma que já tenha feito, já que nunca pus os pés na Jamaica. Mas a doçura da letra e da melodia, cantada por vozes adoráveis —uma delas, a de Alpharita Constantia, ficaria famosa depois ao assumir a identidade de Rita Marley, sim, mulher de Bob—, tudo ali em “King Street” me remetia a um momento de romance, paz e descoberta. Que é o que a gente espera de uma boa viagem...

Até hoje não sei como isso aconteceu, mas ouvir aquilo, naquela tarde escaldante, me transportou para um outro plano. Eu não estava mais em Bancoc, nem em Piccadilly, muito menos em Kingston, a capital jamaicana onde o jovem casal sai para passear na música. 

Por um instante sinestésico, misturei o aroma dos jasmins-manga com a lembrança do sabor das comidas de rua que me cercavam, mais as gotas de suor que grudavam aos poucos o algodão transparente da minha camisa na pele, as cores das pessoas que cruzavam e o refrão da canção “King Street”. 

E me senti um viajante feliz, como nenhum outro que já havia passado por aquela calçada da cidade.

“Don’t need no reservation”, celebrava o trio nos meus ouvidos. Até hoje! Quem precisa de reservas para algum lugar quando este mundo já é seu? Tenho, sim —temos—, o direito de viajar para todo canto e explorar a maravilha da experiência humana. Temos também, é verdade, o dever de respeitar o chão que nos recebe. Saímos com a intenção da troca, nunca da apropriação. E chegamos como estrangeiros, nunca clandestinos. 

E é isso que celebramos aqui. Se somos às vezes invasivos, não é difícil procurar o equilíbrio. Encontre sua trilha. Pelo chão, mas sonora também. Saia de braços abertos. Faça de tudo para ser bem-vindo. Converse com as pessoas, esqueça-se da maioria delas, leve as especiais nas recordações. 

Seja o turista que você gostaria de receber.

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