Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

Pães, panetones, padarias

Neste Natal, pensei nas famílias francesas de cidades sem 'boulangeries'

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Le Mage, Normandia. Noroeste da França. Área: 25,34 quilômetros quadrados. População: 235 habitantes. Este número é de 2016, mas pela impressão que tive numa manhã de terça-feira do outono bastante ensolarado que peguei por lá neste ano, eu diria que a cidade hoje conta com apenas uma fração dele.
Nenhuma padaria à vista. Quando cheguei a Le Mage, depois de uma caminha de sete quilômetros, meu primeiro impulso foi procurar um lugar onde eu pudesse tomar um café. Não tive sucesso na missão. 

Entre as primeiras casas da rua principal, que é praticamente a única rua propriamente dita da cidade, um antiquário charmoso. Fechado, com suas salas vazias. Pela janela era possível ver as marcas fantasma do que talvez já tivesse sido um estabelecimento bem movimentado.

Fotomontagem com foto de uma mesa cheia de farinha de trigo. Na farinha, está escrito "PAS du PAIN", como se alguém tivesse passado o dedo para remover a farinha de algumas partes. As mãos da pessoa estão sobre a mesa, uma de cada lado da foto. Em cima da imagem, há algumas intervenções de cores em amarelo e vermelho
Maíra Mendes

Prateleiras sem objetos, pinturas apagadas nas paredes, caixas acumuladas nos cantos e até uma silhueta do que parecia ser uma velha caixa registradora indicavam que, ali, existiu uma das joias do destino favorito dos colecionadores de quinquilharias, entre Orne e Eure-et-Loir, que constituem a maior parte da região de Perche.

A bela igreja de Saint-Germane-d’Auxerre, só pude conhecer por fora. Sua convidativa fachada, contraditoriamente, me recebia com os portões fechados. Como, aliás, de quase todas as casas por onde passava. 

Num ponto onde já era possível ver adiante a rua virar novamente estrada, encontrei, enfim, um bar. Não propriamente um café, mais uma cantina, que inclusive já se movimentava para receber os clientes para o almoço.

Para acompanhar a bebida quente, arrisquei pedir croissant. A atendente, gentil, mas não muito, informou que só podia oferecer um entregue bem cedo —os pães para o almoço ainda não tinham chegado. De onde? Ora, de Rémalard, a cerca de 10 quilômetros dali (e com uma população cinco vezes maior). 

Guardei esses detalhes como mera curiosidade até que, recentemente, me deparei com uma reportagem no “The New York Times” sobre o sumiço das padarias no interior da França. Escrevendo de La Chapelle-en-Juger, também na Normandia, Norimitsu Onishi descrevia uma triste tendência: as tão amadas “boulangeries” estão desaparecendo das cidades pequenas. E, com isso, as próprias cidades vão aos poucos sumindo.

“Une tragédie”, disse ao repórter o padeiro da pequena Marigny-le-Lozon, ainda na Normandia e, com seus 137 habitantes, menor que La Chapelle-en-Juger ou mesmo La Mage. Um lamento, diga-se, preocupante.
Lembrei-me desse episódio recente quando acordei neste Natal com a mesa de casa ainda repleta de panetones em vários estágios de consumo. Do de chocolate, apenas migalhas. O de frutas brasileiras ainda pela metade. Um de marrom glacê, praticamente dizimado. O de caramelo salgado, novidade!, estava no mesmo estágio. 

E, enquanto fazia um prato com finas fatias de cada um dos que restavam —prazer secreto pós-Natal: torradas de sobras de panetone!—, pensei em quantos quilômetros as parcas famílias de La Mage tiveram que percorrer para poder ter uma mesa assim no dia 25...

Ou ainda, será que elas celebraram a festa nas suas casas ou tiveram também que viajar para destinos mais movimentados, para não se sentirem sozinhas nesta época do ano? Será que alguns lugares ficaram tão insignificantes que nem merecem mais a presença humana, que dirá a visita de um turista?

Foi o cheiro do panetone no forno que me trouxe uma boa resposta. Aquele aroma adocicado me encheu de esperança e já me levou em pensamento aos lugares que quero ir em 2020: países ainda não visitados e grandes capitais pouco exploradas em viagens do passado, sem dúvida.

Mas quero também ser capaz de descobrir lugares como La Mage, que longe de ser um triste réquiem de uma paisagem decadente, na sua simplicidade e resistência nos inspiram a conhecer mais a nossa Terra.
E se for preciso levar uma baguete embaixo do braço para me sentir um pouco mais em casa quando chegar num lugar desses, que mal tem nisso? Vida longa aos padeiros de todo o mundo!

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