Do alto do Olimpo dos clichês, declaro que vou escrever sobre a descoberta de fazer turismo na própria cidade onde eu moro.
Não, não é por falta de destinos. Mas, de repente, por pura obra do destino, me vi novamente inspirado por... São Paulo. E não uso este (outro) clichê como muleta. A culpa toda foi mesmo do acaso.
Às vésperas do Natal eu jantava com a atriz Marisa Orth num dos meus restaurantes favoritos de 2019 na Vila Madalena, o Hirá Ramen Izakaya.
Depois de várias ostras, ramens, gins-tônicas de gengibre e umas duas margaritas (Marisa resolveu ficar mais “clássica” noite adentro), quando eu já havia pedido a conta para ir para casa, ela me convida para ir ali ao lado, caminhando, até o espaço onde seu parceiro estava ensaiando.
Era uma segunda-feira, bem depois das 22h, e achei improvável encontrar alguma movimentação séria, mesmo naquela vizinhança tão boêmia.
Tentei argumentar que estava meio tarde e fui carinhosa e rispidamente ignorado por Marisa, talvez a única pessoa capaz de combinar essas duas atitudes tão opostas com graça e bom humor.
Menos de dez minutos de caminhada e eu estava na Casa de Cultura Os Capoeira, onde Mestre Dalua, o companheiro de Marisa, circulava por uma pequena orquestra de instrumentos de percussão dos mais variados.
Inclusive, logo reparei, duas mulheres com os tornozelos camuflados por fartas camadas de guizos. O ensaio com o qual ela havia me seduzido parecia ter terminado.
Espalhados por uma grande sala e por um terraço que se abre como um palco para a rua Belmiro Braga, os músicos se confundiam com os artistas que se apresentavam logo em frente, num circo improvisado no apertado parque urbano da rua. O clima parecia de despedida quando Dalua gritou: “Saideira!”.
Dali em diante eu não tenho mais certeza do que aconteceu. Lembro-me vagamente de ele ainda ter dito: “Samba da minha terra”. E de Marisa me entregar um daqueles pequenos copos de cachaça —cheio até a boca. O resto foi algo próximo de um sonho.
Sei que esgotei minha cota de lugares-comuns já nos primeiros parágrafos, então vou evitar tal metáfora.
Recalculando: talvez seja melhor chamar de transe o que aconteceu quando aquilo começou a vibrar. Mas também não quero ir pelo caminho fácil de comparar tudo a uma cerimônia religiosa.
Eu sei lá! A única coisa que posso realmente admitir é que fui tomado por uma vibração forte e inexplicável.
E não adianta culpar a cachaça, porque, ao mesmo tempo em que sentia meu corpo tremer, tinha a consciência da árdua missão de equilibrar aquele líquido precioso contido no dedal de vidro, porque eu tinha a certeza de que iria tomá-lo de uma vez quando viesse o silêncio.
Que, aliás, tardou. Após uma canção de Caymmi, entrou um canto de roda africano, e o que já ressonava poderoso explodiu como um vulcão (quarto clichê, estou anotando).
Os poucos que não participavam da banda, eu entre eles, assistiam a tudo de um mezanino que parecia suspenso pela intensidade daquelas batidas. E eu quase me esqueci que tinha que acordar às 5h30 na manhã seguinte.
Eventualmente a festa acabou. Tomei minha cachaça, chamei um táxi e fui para casa com a estranha sensação de seguir com o corpo vibrando, mesmo longe da Casa de Cultura Os Capoeira.
Como se toda a experiência tivesse vindo comigo, como se aquilo, sim, fosse importante para a gente celebrar um ano que terminava e outro que estava por chegar. Como se não fosse uma segunda-feira.
Lembrei-me que o motivo de eu sair para jantar com Marisa era uma certa artista russa que encantou o Brasil com sua excentricidade. E não vamos nem falar dos dreadlocks que brotavam de sua cabeça.
E que só uma cidade como São Paulo poderia me oferecer uma noite assim tão imprevisível. Que eu gostaria de repetir por todo o ano de 2020.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.