Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

Ser quem eu sou, estar onde estou

Ai de quem quiser me dizer como, quando e aonde eu posso ir

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Eu havia embarcado muito cedo em Phnom Penh. O sol nem tinha nascido quando eu ainda me adaptava ao balanço do barco que, por longas e quase sempre agradáveis horas, me levaria a Siem Reap pelo rio Tonle Sap.

Sim, eu estava no Camboja. E ninguém sabia direito onde eu estava. Como já compartilhei com você que me acompanha neste espaço, para mim, um dos grandes prazeres de viajar é ter a impressão de que você está solto, quase incógnito, não exatamente escondido, mas com a certeza de que mesmo quem te quer muito bem não consegue precisar onde você está.

Maíra Mendes/Folhapress

É uma das sensações mais libertadoras que existem, e afirmo isso não com aquela nostalgia hippie de querer viver sem amarras, por aí. É realmente uma catarse sentir-se assim: num lugar onde ninguém nem desconfia qual é.

É também um pouco assustador, porque você se sente de repente muito poderoso e isso é sempre perigosamente inebriante. Com o dia amanhecendo e o céu prometendo uma paisagem fulgurante, faltava pouco para eu me sentir totalmente invencível, parte inseparável daquele pedaço de mapa que cruza e também capaz de atravessar qualquer outro canto neste nosso planeta com o mesmo entusiasmo e a mesma propriedade.

Quem já viajou, não importa para qual destino, conhece essa sensação —ainda que não a tenha elaborado. 

É como se você fosse dono do mundo. Pensa em cada detalhe do passeio e, ao mesmo tempo, já quer planejar o próximo.

Não deixa de ser inusitado, você pensa, um menino que nasceu no interior de Minas Gerais, depois de rodar muito por aí, se encontrar nessa latitude, nessa longitude, subindo um rio caudaloso que, àquela altura, com suas margens já invisíveis a olho nu, parecia mais o alto-mar. 

Que direito eu tinha de estar ali? De cruzar tantos limites, tantas culturas? De ousar ir tão longe? De repetir uma jornada? Não seria ousadia demais eu focar minha vida em algo tão efêmero quanto viagens de turismo? 

Pensava aquilo quando voltava a ver as margens do Tonle Sap não com brevidade, mas com o peso de quem, na vida, ouviu críticas e recebeu olhares reprovadores contra essa paixão: a de explorar nosso planeta. E me senti pequeno.

Que é exatamente como as pessoas que acham que podem mandar na sua vida, que acham que podem dizer aonde você deve ir, quando e quantas vezes, querem que você se sinta: pequeno, inferior, não 
digno daquela travessia, daquela aventura.

Talvez tenha sido o calor do meio-dia, mas esses pensamentos começaram a entrar em ebulição. Incapaz de procurar uma sombra, continuei a remexê-los e aos poucos fui me sentindo menos acuado ao concluir que eu tinha sim muito direito de estar ali. Ou em qualquer lugar que eu quisesse.

Na solidão de um noite gelada dentro de um “yurt” (caba circular) na Mongólia. Cruzando pela enésima vez a place de la République, em Paris. Tropeçando nas pedras de Paraty. Descendo de bicicleta o vulcão Osorno, no Chile. Numa mesa farta de um “caravançarai” (espécie de estalagem) em Baku, capital do Azerbaijão. Numa ruína em Zanzibar, na costa da África. Num trem que sai do Cais do Sodré, em Lisboa, com destino a Cascais. Experimentando uma farofa artesanal com os pés no rio Barreirinhas, saindo dos Lençóis Maranhenses. Dentro de um estádio para ver o U2 em Oakland, na Califórnia. Na Disney de Hong Kong —aliás, em qualquer Disney! Diante do horizonte infinitamente azul de Cefalônia, na Grécia.

Fui lembrando de todos os lugares a que já fui e somando os que ainda quero visitar. E me veio Rita Lee na cabeça. Sentia prazer no ar que respirava a caminho dos templos de Angkor, ainda no Camboja, mas mais que isso, orgulho de “ser quem eu sou, de estar onde estou”. E ai de quem um dia quiser me dizer como e quando eu posso ir aonde eu quiser. 

Junto economias, faço bicos, tiro férias e sigo embarcando sem fronteiras, solto, muito solto e livre. E se possível cantando, como fiz saindo daquele barco, desembarcando na cidade flutuante de Siem Reap: “Um belo dia resolvi mudar, e fazer tudo que eu queria fazer...”.

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