Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Zeca Camargo

O que o dólar alto te rouba

Moeda americana valorizada dificulta acúmulo de experiências mundo afora

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Não faço ideia de quanto estava o câmbio quando fiz minha primeira passagem pela Europa como mochileiro, no início dos anos 1980. Posso até descobrir com dois cliques na internet, mas a questão aqui não é essa. O que quero dizer é que, com o dólar por volta dos R$ 4,50, fiquei imaginando se uma empreitada como aquela seria possível.

Sim, porque as consequências da acelerada desvalorização da nossa moeda para nós que gostamos de viajar são quase todas negativas. E fui voltar quase quatro décadas na minha memória para falar sobre isso.

Ilustração que mostra o peito de um homem que está segurando uma das alças da mochila que está em suas costas. Há uma estampa na frente da camiseta, onde é possível ler "Pause." e em cima da palavra há duas barras paralelas, como é o símbolo de pausar nos equipamentos eletrônicos. As cores predominantes são amarelo e preto.
Maíra Mendes

Vou tentar resumir as mazelas agora impostas a um turista brasileiro, já que elas são várias —e eu não estou nem falando das férias do Enzo na Disney, uma tradição desde que ele completou dois anos de idade. Tampouco me vêm em mente as privações da Valentina, que vai ficar por um tempo sem poder aproveitar com sua mãe os outlets de grife em Miami

Falo das oportunidades perdidas (adiadas?) por garotos e garotas que, como eu mesmo já fiz um dia, estavam de mochila pronta para explorar mundos além do seu quintal. 

Os que tentam comprar seus bilhetes agora talvez sejam irremediavelmente afastados pelos preços altos que as companhias aéreas disfarçam como ofertas. Mas mesmo quem teve a “sorte” de adquirir a passagem antes que o real tivesse perdido quase 20% do seu valor, como aconteceu nas últimas semanas, não escapa de encarar outras angústias no seu orçamento no exterior.

Fui ver, por exemplo, quanto custava hoje o hotel em que, na minha estreia como mochileiro, me hospedei em Londres, o Trebovir, onde dividi um quarto gelado (a janela estava quebrada) com um amigo da faculdade, que teve lá sua mochila violada com uma faca sem corte (que o intruso desastrado ainda esqueceu dentro dela).

Na melhor das ofertas, esse estudante, rachando com mais alguém, pagaria R$ 250 pela diária do Trebovir —as janelas, pelas fotos do site do hotel, estão intactas, mas boa sorte com sua mochila! Sei que você pode achar, com sites de busca que nem existiam naquela época, coisas mais baratas. Mas aí vêm os outros gastos...

Um passe para visitar todos os museus por três dias? R$ 720. Um tíquete para o festival de Glastonbury, que custava cerca de R$ 1.500 quando foi colocado à venda, em outubro de 2019, já vale pelo menos o triplo disso. Ou mesmo um ingresso para assistir, digamos, a um show da cantora sueca Tove Lo semana que vem na cidade não sai por menos de R$ 170.

Um cartão de metrô para andar livremente pelo centro por um dia? R$ 73. Um sanduíche com suco no Pret a Manger? R$ 35. Quer fazer uma extravagância e ver a Londres de cima na London Eye, aquela roda gigante maravilhosa? Separe pelo menos R$ 165.

Fazendo as contas assim, não é difícil ver que a aventura do conhecimento, que sempre deve ser o principal motivo de uma viagem, está um pouco mais longe do turista sonhador. E o que se perde com isso, é bom explicar, vai muito além do seu saldo médio no banco: o maior prejuízo é ficar sem as experiências que você, depois de concluir que não vai dar mais para ir, deixa de acumular. 

O paralelo com minhas lembranças de Londres de mochila no início dos anos 1980 é, claro, só uma amostra dos sonhos que um câmbio desastroso como o que atravessamos é capaz de esmagar. Incontáveis vivências serão postas de lado até as coisas melhorarem. E aí não falo só de museus ou outras atividades culturais.

Lembro aqui dos porres, dos namoros, das madrugadas esperando o sol nascer às margens de um rio —Tâmisa, Sena, Mekong, Prata, Níger... Lembro das caminhadas nas ruas, sem destino. De olhar vitrines sem comprar nada. Dos sorrisos ao ver rostos diferentes do meu. Das confusões por não falar a língua de um determinado lugar. Das fotos que tirei de uma esquina qualquer por motivos tolos que hoje eu nem consigo lembrar. De voltar uma pessoa diferente a cada novo destino.

Isto tudo está em pausa, esperando dias melhores. Até lá, só posso torcer para que os sonhos desses mochileiros não se apaguem enquanto o dólar sobe frustrantemente rumo aos R$ 5.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.