Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Zeca Camargo

Cada vítima desta crise queria ir a algum lugar, para conhecer, amar, se perder

Itinerários são interrompidos por pandemia num Brasil onde só temos uns aos outros

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Dalva iria ver a filha no Natal, em Natal, sua primeira viagem de avião, primeira vez que ela sairia da sua cidade no interior de Minas.

Edivaldo estava com tudo certo para fazer seu mestrado em psicologia na Universidade de Coimbra, um sonho desde que entrou na (UFRGS) Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Cláudia aceitara o convite para abrir um restaurante em Fortaleza, experimentar com sabores capixabas o paladar dos cearenses.

Marina vibrou ao ter sido aceita como locutora numa rádio em Blumenau, ainda mais porque sua família deu a maior força para ela mudar de Poconé (MT) e seguir sua vocação.

Denilson combinou com sua mulher que ele iria na frente, pegar a vaga de gerente de banco em Parintins (AM), e ela ficaria mais uns meses em Imperatriz (MA) até ele se acertar lá.

Arlete só queria ver de novo o namorado argentino que tinha conhecido nas últimas férias, com passagem comprada para junho e hotel reservado em Bariloche.

Clara Lúcia se mudaria para sempre do Brasil, decepcionada, levando na bagagem para Miami apenas a coragem e a dor de deixar seus pais sozinhos em Fernandópolis (SP).

Fabrício ia levar o filho e a mulher para a ver bichos "de verdade" num parque da África do Sul —e o Júnior nem dormia de expectativa.

Marlos já tinha gastado as economias dos dois empregos em Curitiba num bilhete para Londres, queria ver todos os festivais de música que ele conseguisse no verão inglês.

Tânia Larissa tinha prometido levar a mãe para ver uma missa do Papa no Vaticano assim que a pandemia na Itália passasse e ainda trariam medalhinhas para toda a família em Maringá (PR).

Dilsinho iria jogar futebol no Marrocos. Não em Marrakech, mas numa cidade que ele, dois meses antes de ir, ainda tinha dificuldade de achar no mapa.

Depois do casamento em Palmas, a lua de mel da Charlene e do Cássio seria em Porto de Galinhas (PE).
Valério estava de mochila pronta para encarar o inverno chileno —não era a época ideal, mas foi a folga que ele conseguiu.

Marília se separaria das amigas na república em que morava em Ouro Preto (MG) para passar um mês navegando no Amazonas.

Marcelo Augusto prometeu para sua mãe que, quando chegasse em Pune, na Índia, daria notícias.
Dona Alberta tinha bordado uma roupa de batismo para sua terceira neta e iria de Santarém (PA) entregá-la pessoalmente em Aracaju (SE).

Stênio veio visitar os pais em Ponta Porã (MS) e voltaria neste mês a Paris para seu posto no balcão de informações no Beaubourg.

Vinícius se casaria em Dublin em outubro com Patrick, que ele conheceu no último Carnaval no Rio.

Ângela iria voltar para a fazenda onde nasceu, em Xapuri (AC).

Serena queria ver o pai em Barbacena (MG) uma última vez.

Carolina fechou um contrato de dois anos em Singapura.

Tauã iria dançar em Istambul.

Kátia cuidaria de idosos em Munique.

Junan estudaria artes em Florença.

Camila, teatro em Avignon.

Edu voltaria a Bali para pegar onda.

E rever a namorada.

Mileyni ajudaria uma ONG no interior de Alagoas.

Dorinha daria uma força para a filha separada em Feira de Santana (BA).

Túlio só queria se esquecer de tudo na Praia do Rosa (SC).

Cláudia em Bonito (MS).

Sheyla em Carnaubinhas (PI).

Auro em Luang Prabang.

Todas essas viagens, interrompidas. Por uma pandemia fora de controle, num Brasil onde os cidadãos, no lugar de contarem com no mínimo uma estratégia para preservar vidas, só têm uns ao outros para se proteger.

Nenhuma dessas histórias é verdadeira. Criei aqui hipotéticos itinerários, interrompidos brutalmente pela Covid-19. Mas são histórias possíveis, uma vez que o sonho de viajar, ou ainda, de usar a viagem para realizar um sonho é um dos prazeres que dá sentido à vida.

Agora multiplique essas jornadas por cem, mil, 10 mil. E imagine que cada vítima desta crise queria um dia ir a algum lugar. Para conhecer, amar, comer, matar saudades, para esquecer, trabalhar, sossegar, crescer, sumir, para se perder, se encontrar, para viver.

E deseje, com seus pensamentos e suas atitudes, que nenhuma outra viagem possa um dia deixar de acontecer.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.