Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

Migalhas milagrosas

Comecei a colecionar lembranças de viagens que foram realmente especiais

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A inspiração para o título de hoje veio de um piquenique de fim de verão no Jardim das Tulherias, em Paris, com vista privilegiada para o Louvre.

Na toalha, potes de tarama (pasta de ovas de bacalhau), presunto cru, queijos tão infinitos quanto as garrafas de vinho, quase todas vazias.

Pessoas caminham pelo Jardim das Tulherias, em Paris, reaberto depois da pandemia
Pessoas caminham pelo Jardim das Tulherias, em Paris, reaberto depois da pandemia - Charles Platiau/Reuters


O grupo de amigos iria se separar dali a dois dias e fazíamos listas de prioridades antes da partida.

Mais de uma pessoa manifestou o desejo de ir até a rue du Bac, Saint Germain, visitar a Capela de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa e levar para o Brasil, justamente, várias medalhinhas —uma lembrança de fé para os cristãos.

Uma de nossas amigas, que dançava sobre a relva, juntou-se a nós e ouviu a conversa com certa estranheza.

Não sendo cristã, ela parecia não ter ideia do que falávamos e, coroando sua desorientação, perguntou: “Alguém pode me explicar o que é essa migalha milagrosa que vocês falam tanto?”.

Embalados por todo aquele vinho, soltamos uma estrondosa gargalhada. A própria autora da expressão equivocada se divertiu com a história.

E nós ganhamos um novo bordão para as conversas de amigos.

Ressuscitei a ideia de uma migalha milagrosa recentemente, quando, privado de qualquer viagem nos últimos meses, comecei a colecionar lembranças de viagem que foram realmente especiais.

Migalhas da memória, digamos, mas nada ordinárias.

Não falo dos clássicos cartões-postais —Torre Eiffel, Coliseu, Hagia Sophia, Pelourinho, Taj Mahal. Mas daqueles momentos, entre tantos, que foram “milagrosos” ou, ainda, transformadores, que deram um sentido maior não apenas a determinada viagem, mas a minha própria vida.

Alguns deles já dividi aqui mesmo com você: aquele meu aniversário em Luang Prabang, no Laos, quando reuni todos meus amigos mais queridos na Caverna dos Mil Budas; o mamão que ganhei de presente de despedida de um amigo saindo de São Tomé e Príncipe; meu primeiro passeio pelas ruas de Bancoc ouvindo “King Street”, das Soulettes.

Mas a memória trouxe coisas ainda mais especiais. Como o amigo secreto que fiz com minha família e poucos amigos num hotel distante na Namíbia —uma confraternização que era de Natal, mas atemporal na renovação dos laços entre as pessoas que ali, no meio do nada, trocavam presentes improvisados.

Ou a primeira vez que inaugurei meu ritual de colocar uma moeda embaixo de um Ganesha na ala de artes da Índia no Museu Metropolitan, em Nova York —o medo de ser pego pela segurança vencido pela excitação de um gesto transgressor e de fé. (Perdi a conta de quantas vezes fiz isso e me orgulhava sempre de ver, ao retornar lá, as moedas aos pés do deus com cabeça de elefante.)

Encontrar um enorme Buda soterrado e sorridente nas ruínas de um vilarejo às margens do lago Inle, Myanmar, e ficar tão encantado a ponto de não ouvir o guia me chamar por mais de 15 minutos foi, sem dúvida, um momento iluminado. Mágico.

Mas nenhuma dessas lembranças se compara à manhã em que acordei embaixo de uma árvore com uma menina de três anos de idade segurando um frango sobre minha cabeça.

Ela era Rachel, filha do meu guia em Papua Nova Guiné, que tinha o curioso nome de Weekly —assim mesmo, “semanalmente” em inglês.

Eu fazia um trekking pela ilha tão enigmática e, depois de chegar à aldeia de Weekly e assistir a uma hipnótica dança do fogo na noite anterior, despertei como de um transe naquela cena adorável. Rachel tinha soltado a ave e parecia pedir um abraço. Irrecusável.

Naquele alvorecer, a árvore, meu cansaço, o registro da cerimônia ancestral, os pequenos braços de Rachel no meu pescoço e todo amor que eu sentia se misturaram para me levar a uma outra dimensão. Da qual eu jamais gostaria de ter saído.

De tudo que vivi pelo mundo, essa foi uma das experiências mais fortes e inexplicáveis.

E, nesse longo hiato de viagens, eu só sinto gratidão de poder guardá-la num lugar tão especial na minha coleção de migalhas milagrosas.

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