Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

Ideia de viagem

Logo cometeremos a loucura de nos enamorarmos novamente pelo mundo

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Inverno parisiense de 1985, certamente janeiro, quando eu tirava férias na época da faculdade. Sim, definitivamente janeiro, porque eu me lembro de ter titubeado na difícil escolha entre ficar no Brasil e assistir ao primeiro Rock in Rio ou partir para Paris. Ganhou a viagem, claro.

Com o orçamento de universitário na Europa, driblando as refeições com crepes doces e salgadas, deparei-me com outra escolha difícil para todo jovem turista: comer um pouco melhor ou gastar parte do que tinha na carteira para ver um espetáculo único? Perdeu a fome, claro.

O evento em questão: uma rara (se não única) incursão do grande coreógrafo francês Maurice Béjart no teatro. Hipnotizado pelo seu famoso “Bolero” (Ravel), que tinha passado pelo Brasil no começo dos anos 1980, eu era presa fácil para qualquer trabalho desse artista.

Assim, juntei meus francos (o euro, apenas uma ideia) e comprei um bom assento no teatro. Não dei muita atenção ao fato de minha fluência em francês ser então sofrível, mesmo ciente de que tinha adquirido um ingresso não para um balé, o forte de Béjart, mas para uma peça de teatro. Aliás, uma não: cinco.

A montagem era “Cinq Nô Moderne”, de Yukio Mishima. Eu lembrava vagamente de que “nô” era um estilo de teatro tradicional japonês, que misturava texto, aspectos visuais e até mesmo música. Para além disso, não tinha informação alguma.

E sabia quem era Mishima por causa de David Bowie, ídolo eterno. Se o cara de quem eu era fã gostava dele, só podia ser bom! E com Béjart na equação, eu tinha a certeza de que eu teria uma noite maravilhosa no teatro.

E quase foi isso. Digamos que minha compreensão dos cinco “nô” ficou bem aquém da minha expectativa —já bastante baixa. Mas me lembro de ter sido seduzido mais com os olhos do que com os ouvidos.

No entanto, 35 anos depois, sou incapaz de lembrar exatamente o que presenciei naquele palco. Uma das histórias, porém, me marcou tanto que eu a trago comigo até hoje e ela sempre me faz pensar no poder do amor. E da memória.

Peço perdão a quem conhece profundamente a obra de Mishima, pois o que vou contar agora é só um frágil fragmento de momentos vividos décadas atrás. E, portanto, passível de imperfeições. Mas vá lá...
A história que tanto mexeu comigo era a de uma princesa que, apaixonada por seu marido, viu-se separada dele pela guerra, logo após sua união.

Tão intenso era o amor da princesa que ela vivia todos os dias para ele, na expectativa que seu príncipe logo retornasse. O tempo passou e o amor, em vez diminuir, só se fortalecia, mais e mais.

Até que um dia o amado reentra o palácio e, ao correr para abraçá-la, fica surpreso ao ser recebido com frieza. A princesa simplesmente não o reconhecia e parecia imune aos pedidos de reaproximação de seu consorte. O que teria acontecido?


Numa fala que nem sei como compreendi, a princesa explicava então que não estava mais apaixonada por ele, mas pela saudade, pela ausência e pelo amor que tinha guardado para o príncipe. E, se ela de fato o abraçasse, perderia tudo isso.

Você a esta altura talvez esteja se perguntando porque escrevo sobre isso neste espaço de turismo? Sim, é uma história sobre uma experiência em Paris, mas o que ela tem a ver com o sentido de viajar?Bem, estamos há tanto tempo sem isso e, ao mesmo tempo, tão apaixonados pela ideia de viagem que, perigosamente, corremos o risco de, como a princesa, gostarmos mais da ideia do que da viagem em si.

A memória e o coração têm o poder de fazer isso com a gente.

Mas alerto: resista! Logo vamos viver de novo essa nossa paixão de sair por aí. E, ao contrário do destino talvez triste (embora poético) da princesa, cometeremos a loucura de nos enamorarmos novamente pelo mundo.

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