Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo
Descrição de chapéu Europa férias

Imprevisíveis souvenires

Atraído por esse estranho chamado, me deparei com uma figura surreal

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Não importa para onde eu vá em Madri, eu tento passar pela Plaza Mayor. Mesmo que eu tenha que sair um pouco da minha rota, faço o desvio. Pela elegância da sua arquitetura. Pelo céu azul sobre as paredes rosa-escuro. Para ver o movimento das pessoas. E conferir se uma estranha criatura está por lá.

A última vez que estive na Espanha foi em 2017, também a última vez que vi tal criatura. A primeira? Acho que 2005. Eu estava atravessando a praça, ainda sem o compromisso de um ritual e, antes mesmo de vê-la, eu a ouvi.

Ou ainda, ouvi um som que não conseguia identificar bem. Parecia uma castanhola, mas vinha junto com uns guizos. E aí um assobio e um gritinho, não exatamente humano.

Atraído por esse estranho chamado, fui até um canto da praça e me deparei com uma figura surreal, não muito longe do imaginário de uma cultura que nos presenteou com Goya, Miró, Picasso, Dalí. Humano ou animal? Não soube dizer na hora.

A cabeça lembrava a de um bode, referência reforçada por seus chifres contorcidos. Mas tinha um bico. E não se via quatro patas. Seu... hum... corpo era coberto por um manto de franjas metalizadas e coloridas, que o vento decidia em que direção deveriam dançar.

Tinha a altura de um adulto agachado, mas poderia esconder ali também uma criança. E se contorcia em movimentos rápidos, às vezes nos surpreendendo com uma empinada de um pescoço inexistente.

Ao seu lado, uma caixinha de doações. A criatura não disfarçava sua vocação de pedir dinheiro aos turistas transeuntes mas, bem longe das batidas estátuas humanas e bailarinas flamencas previsíveis, aquela figura destoava de tudo.

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Edifício Metrópolis, um dos cenários do longa 'Carne Trêmula', de Pedro Almodóvar - Luana Fischer/Folhapress

Fiquei uns bons minutos observando-a e, antes de sair, deixei 5 euros na caixinha. A criatura fez um silêncio, empinou-se na minha direção e bateu o bico freneticamente como se quisesse me morder. Saí de cena disfarçando meu receio de que aquela imagem pudesse me assombrar para sempre.

Contrariando essa expectativa, porém, fiquei fascinado com o que vi. No hotel, ficava repetindo o curta filme que tinha feito na praça (isso foi antes dos smartphones), hipnotizado. Voltei lá no dia seguinte e nos dois outros dias que me restavam na capital espanhola.

De lá até hoje voltei mais umas cinco vezes a Madri e toda vez passo lá para deixar meus 5 euros.

Madri, claro, não é fraca de cartões postais. Do Palácio de Cristal (no parque Bom Retiro) à Fonte das Cibeles (Gran Vía), a capital é uma cornucópia de cenários de selfie. No entanto, eu sempre volto para aquela figura da Plaza Mayor.

Por quê? Bom, para explicar isso eu também teria que entender por que toda vez que vou a Bangcoc visito primeiro o altar de Erawan e não o Grand Palace. Ou por que, em Nova York, eu faço questão de ir ao museu Metropolitan e deixar uma moeda numa pequena estátua de um Ganesha.

Em Paris, tenho mais de 50 fotos no Square George Cain —tenho inúmeras também na Place des Vosges, mas é naquele pequeno jardim que me sinto bem. Em Buenos Aires, disparo selfies de Caminito ao obelisco, mas em nenhum estou tão em paz quanto no pier do Club de Pescadores...

Guardamos memórias inesperadas e inexplicáveis de nossas viagens. E elas voltam à superfície por caminhos não menos enigmáticos. Podem ser despertadas por uma música, um cheiro, um sonho.

Ao contrário dos algoritmos, que só nos entregam o que (eles acham que) queremos ver e ouvir, nosso cérebro trabalha na maravilhosa imprevisibilidade das sinapses. E, quando eu menos espero, lá está a criatura da Plaza Mayor de novo batendo seu bico atrás de mim.

"Fala, memória", né Nabokov?

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