Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo
Descrição de chapéu

Lembranças sussurradas com raiva

Eu já vi como é viver com medo de dizer as coisas

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Não vejo Grigore nem Sam há anos. E olha que eu tinha a ilusão de que eles seriam meus amigos para sempre. Talvez ainda sejam, Grigore bebendo uma cerveja num bar em Bucareste, Sam vendo um por do sol no templo de Neak Pean, no Camboja. Mas essas são conexões feitas antes das redes sociais. Com sorte, sobrevivem no éter.

A lembrança deles veio nesta semana quando flertamos com uma ameaça frágil, infame e desastrada de censura no nosso instável cotidiano. A Folha cobriu bem a recente tentativa de proibir artistas no Lollapalooza de expressar suas opiniões. E esse gatilho me fez voltar a Grigore e Sam.

Show em tributo a Taylor Hawkins, baterista da banda Foo Fighters, durante o Lollapalooza. - Adriano Vizoni/Folhapress

Muito já foi escrito sobre o despropósito de tal ato, para não falar da burrice eterna de tentar abafar um movimento jovem proibindo sua manifestação (a resposta empiricamente comprovada é sempre chamar ainda mais atenção para o objeto da proibição). Mas Sam e Grigore me trouxeram outra perspectiva para o imbróglio.

Sam era filho da "revolução" de Pol Pot, uma das maiores atrocidades histórica dos tempos modernos. Líder do Khmer Vermelho, sua ditadura brutal (1975/79) matou algo entre 1,5 milhão e 2 milhões de pessoas —um número impressionante, até porque era cerca de um quarto da população do país naquela época.

Um guia com seus trinta e poucos anos, Sam (codinome ocidental que facilitava seus contatos com os turistas) era mais reservado que a maioria dos orientais. Mas por algum canal inexplicável, ele se sentiu à vontade, depois de uma certa convivência, para contar um pouco de sua história.

Nos piores períodos do Khmer Vermelho, Sam passava dias, semanas, com sua mãe e suas irmãs num buraco, esperando seu pai voltar com comida. Uma volta que, diga-se, não era certa.

E o tom reticente com que ele me descrevia tudo era tímido e raivoso, como se mesmo anos depois de a ameaça de repressão ter sido afastada ele ainda tivesse medo das palavras. Não muito diferente de como Grigore desabafava comigo.

Nessa mesma viagem, a volta ao mundo de 2004, fui apresentado a ele num café que certamente não existe mais, chamado Turabo, no centro antigo da capital romena. Nos conectamos imediatamente e logo vi que ele queria falar de Bucareste, mas não sobre as coisas que meu guia oficial, Cornel, me apresentava.

Saindo do Turabo uma tarde, ele me levou à alfaiataria de um tio seu ali perto, com o impossivelmente charmoso nome de Casa Elegantei. Fui apresentado ao senhorzinho que não saía de trás de sua máquina de costura e ouvi as mais tristes histórias de uma família que quase sumiu.

Pai, irmão, irmã, tios e primos e primas de Grigore tinham desaparecido sob o regime atroz de Nicolae Ceausescu, ausências com as quais ele aprendeu a conviver, mas não a se acostumar, na sua infância e adolescência. Narradas para mim com raiva sussurrada.

Seu medo era o mesmo que o de Sam: que alguém ouvisse tudo e o punisse. A pedido de Grigore, nem citei nosso encontro no livro que publiquei sobre essa viagem. Esta é a primeira vez que divido com alguém suas histórias.

E o faço porque o fantasma da censura, do espectro da força proibitiva diante de qualquer narrativa e do medo que isso, a longo prazo, pode provocar, voltou a assombrar o Brasil no último domingo. O perigo foi afastado, hoje você nem acha mais notícias sobre isso na home do dia.

Mas a qualquer nova ameaça parecida, eu vou me lembrar de novo de Sam e de Grigore. Porque eu já vi como é viver com medo de dizer as coisas. E isso não tem lugar no mundo que a gente quer conhecer.

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