Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

Comer, rezar, ler, escrever, amar

E se o maior fascínio das escritas de viagem for justamente o percurso?

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Houve um tempo em que o mundo cabia numa carta. Ou num diário. Pensei nisso quando aceitei o desafio de uma colega assídua nesta Folha, das mais queridas: Noemi Jaffe. Veio dela o convite inesperado para dar aulas sobre escritas de viagem!


Sou, claro, ávido leitor desse gênero, mesmo de narrativas mais antigas que nem imaginavam que ganhariam essa classificação. E, com meus textos neste espaço, que completam quase dez anos, acho que posso me considerar também um autor do gênero.

Anotações em um dos cadernos do cientista Charles Darwin - Stuart Roberts/University of Cambridge/AFP

Mas, uma coisa é navegar por leituras e escritas. Outra é organizar um curso para encantar as pessoas com essas histórias. A provocação de Noemi, no entanto, provou-se irresistível.


Com pouco tempo para me organizar, comecei a recapitular as boas escritas de viagem que já tinha cruzado na minha vida. Eram tantas as possibilidades!

Se cada autora, cada autor, tem uma bússola própria, podemos agrupá-los em fronteiras literárias? Quando as viagens passaram de mero registro ao tema central para alguns escritores?


Comecei achando que estava numa estrada sem mapa, e só comecei a me orientar quando percebi justamente o que descrevi no início da coluna de hoje: antes de serem livros, escritas de viagem eram cartas informativas ou simplesmente diários, nem sempre publicados.


Pense na famosa carta de Pero Vaz de Caminha. Com o simples intuito de informar "El-Rei" Dom Manuel sobre o que as caravelas de Pedro Álvares Cabral viram por aqui, ela tornou-se a primeira narrativa de um futuro Brasil.


"Eram pardos", descreve Caminha, "todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrissem suas vergonhas". Detalhes do encontro entre portugueses e indígenas que aqui já viviam soam bizarros ao nosso olhar contemporâneo.


Eram, contudo, uma nobre tentativa de descrever o indescritível: as cores, os habitantes e os costumes de uma "terra incógnita" onde tudo era novo. Um exercício que, diga-se, eu adoraria ter executado.


Fui um pouco mais atrás na história e quis começar a primeira aula com a "Odisseia", de Homero, uma saga onde paisagens como a ilha de Ítaca aparecem acidentalmente —muitas vezes, de maneira fantástica. E segui com "As Viagens de Marco Polo", com passagens ainda mais surreais.

Avançamos alguns séculos para falar da viagem de Goethe para a Itália, e de Charles Darwin no Beagle. Convoquei os diários de Orwell na Birmânia, os de Kerouac pelos EUA, os de Che Guevara pela América do Sul.

E ainda salpiquei um Graciliano Ramos com seu genial diário de uma viagem à Ucrânia e Rússia, recentemente relançado pela José Olympio. E assim começou nossa viagem pela escrita... de viagem.


Na segunda aula, hoje, juntei intuitivamente outros livros: aqueles que têm um cenário distante (e muitas vezes exótico, adjetivo que desprezo...) como pano de fundo para uma história.

Pense em "O Céu que Nos Protege" (Bowles); "Uma Passagem Para a Índia" (Foster); "O Talentoso Ripley" (Highsmith), "A Relíquia" (Eça de Queiroz); tudo de Jorge Amado!

Depois virão os livros onde a viagem é a protagonista da narrativa: "O Grande Bazar Ferroviário" (Teroux); "Na Patagônia" (Chatwin); "A Ilha" (Fernando Morais); "Comer, Rezar, Amar" (Elizabeth Gilbert).


E vamos terminar com quem está explorando novas maneiras de falar sobre os lugares, como Teju Cole faz com Nova York em "Cidade Aberta"; Rodrigo Lacerda com a paisagem carioca em "Vista do Rio"; W.G. Sebald em toda sua obra.


No fim, ninguém garante que teremos chegado de fato a algum lugar. Mas, e se o maior fascínio dessas escritas de viagem for justamente o percurso, não o ponto final?

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