Análise: "Michelin", um guia terrestre, não serve para a era do avião
Em gastronomia, a França é um espelho. Quando o guia "Michelin" surgiu (1900) seu propósito era dizer aos compradores onde encontrariam pneus e gasolina ao longo das viagens. O automóvel era a novidade; o guia, as facilidades. Aos poucos, agregou-se a função de indicar onde se hospedar e comer, com conforto. Sobre quatro rodas, surgia o gourmet deambulador.
Nos anos 1950, Curnonsky, principal gourmet da França, passou a fazer a seleção de restaurantes para o guia. Para ele, a cozinha regional, paraíso da boa mesa, fundamentava "a aliança entre o turismo e a gastronomia", e a eficiência turística do "Michelin" era sua garantia. Disso resultou um guia que, durante sete décadas, resumia o repertório seguro da boa mesa francesa e, por extensão, dos países amigos.
Com o surgimento da revista "GaultMillau" (1972), comprometida com a "nouvelle cuisine", o guia "Michelin" sofreu seu primeiro abalo, perdendo o monopólio de público e de opinião. Mas nada que fosse grave: "GaultMillau" expressava um movimento vanguardista, restrito nos impactos; como vendia um "conceito", e não serviços automotivos, não precisava estar territorializado. Começava a diáspora da boa mesa.
E, hoje, num mundo globalizado, pouco importa onde estejam os restaurantes top –se em São Paulo, Estocolmo ou Bagdá. O 50 Best armou-se como o rol dos "melhores do mundo", sendo que os próprios "conceitos" podem mudar ano a ano; cercou-se de uma mídia sem precedentes a partir de um ritual espetacular de celebração.
Imediatamente se tem em mãos uma "lista", como o Nobel da gastronomia, que conquista corações e mentes de gente que vê longe e viaja de avião, não de carro.
Assim, o "Michelin" nasce anacrônico aqui. É um guia de superfícies que o carro percorre, enquanto o 50 Best supõe a visitação virtual e o avião. Só isso explica que "Michelin", no Brasil, tenha se concentrado no eixo Rio-São Paulo; a falta de agilidade para lançar-se antes da Copa; além de erros geográficos de identificação culinária (o Jiquitaia não é um restaurante paraense, como ele diz...).
A credibilidade de um guia está ligada à precisão das informações, à seriedade dos juízos que expressa e, sobretudo, à sua eficácia: indicar os lugares certos para as pessoas certas no tempo certo. Não é o caso. Em suas páginas, o trem parecerá sempre atrasado ou que já passou. Por que, então, abandonaríamos o "Guia Quatro Rodas"?
CARLOS ALBERTO DÓRIA é sociólogo, autor de livros como "Formação da Culinária Brasileira" (ed. Três Estrelas)
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