Descrição de chapéu

Não abri uma delicatessen, mas sim uma torneira de memórias

Paca Polaca é um lugar de avós, mães e comida judias

CLARICE REICHSTUL

Logo às 10h, estaciona um carro em frente ao restaurante. A rua é íngreme, e o motorista tem certa dificuldade para fazer a baliza. A porta do passageiro se abre e uma senhora desce do carro com passos precisos. O motorista corre um tico para acompanhá-la e ela diminui o passo em sua deferência. É a Dona Nina:

"O que você tem aqui? Tem varenikes? Tem pastrami? Me mostra o pastrami. Faz gefilte fish? Sou sefa*, o que estão fazendo para o almoço? É quibe? Ah! Mas tenho que te dar a minha receita, é a melhor de todas, melhor do que a do Brasserie Vitória, você vai ver.

Ah! Não quero varenikes, a mãe da minha nora faz, não precisa. Mas aqui é longe, né? Vim lá do Morumbi. E esse pastrami? Não corta um pedaço pra mim? Da ponta não, do meio, isso, bem aí."

Atendo o telefone. Sr. Moisés do outro lado da linha. "É da Paca Polaca? Vocês fazem gefilte fish?" Sim, fazemos. "Mas é com que peixe?" É com carpa, senhor. "Não põe traíra?" Não, não senhor. "Mas a minha mãe misturava traíra com pescada." Aqui não misturamos, senhor. "Ah, não vai ser tão bom quanto o dela..." Tenho certeza que não, senhor, mas se quiser experimentar, vamos ficar contentes.

Uma mulher examina os potes na estante. Está no final da gravidez, seus joelhos um pouco arriados por causa do peso da barriga. "O que vocês fazem aqui?" Comida judaica polonesa. "Sério? É a comida da minha avó. Você tem kneidalach (bolinha de pão ázimo servida com caldo de galinha)?" Tem. "Tem caldo?" Tem. Um quase choro. Não dá pra saber se é de alívio, saudades, reconhecimento. "A minha avó já morreu, faz tanto tempo que não como a comida dela."

E aí, Bid, sua mãe gostou dos gefilte fish? "Mama curtiu os varenikes e o chrein, achou o gefilte pouco temperado comparado com os que crescemos comendo das avós." Pode ser também como a Flávia, que pergunta se fazemos Kugel. Mas o pai dela, ao telefone, rapidamente diz: "Mas nem adianta tentar, não vai ficar tão bom como o da sua avó".

Abri uma torneira de memórias, não uma delicatessen. Cada um que vem, além de afirmar categoricamente que aquela não é a comida da sua mãe, prontamente passa a receita de como o patê de fígado era feito em sua casa.

Comecei com a comida feita pela minha avó —com a certeza de que ela era mais ou menos universal em nossa singularidade. Que ingenuidade! Não, essa é só uma. Tem as das avós do Moisés, da Dona Nina, do Bid, da grávida e da Flávia. Essas avós falam por meio da memória e da comida. Contam de tempos antigos, costumes velhos e de onde viemos. Contam histórias de lugares longes e estranhos, que, para seus netos em terras novas, têm gosto de lar.

Podia ser a comida de avós africanas, podia ser a comida de avós chinesas, podia ser a comida de avós índias. Mas é um lugar de avós, mães e comida judias.

*sefa - sefaradita, judeus do Oriente Médio e Mediterrâneo

Clarice Reichstul
Cozinheira e proprietária da Paca Polaca
 

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