Em um dia como garçom, repórter relata equívoco e dor nas costas

Experiência de servir as mesas aconteceu em uma movimentada hamburgueria da região central

VICTOR GOUVÊA
São Paulo

Temos vagas para salão; experiência prévia necessária. O anúncio no Instagram da hamburgueria Holy Burger soou como convite a uma experiência imersiva. Como é preencher esse avental e atender o exigente público paulistano?

Decidimos propor à gerente da casa que eu ocupasse o cargo por um dia e, por sorte, ela aceitou. A única condição era a de que os funcionários não soubessem que se tratava de uma reportagem.

Às 10h cruzo a porta à procura de Lucas, o gerente do turno. Cadeiras levantadas, luzes apagadas, e o ambiente se parece com a casa de alguém que despertou há pouco. Um funcionário pica cebola e vira o bacon na chapa —o aroma ocupa o ambiente.

 

Aos poucos chegam insumos frescos como pães e saladas. Lucas aparece dos fundos, é mais jovem do que imaginava, aparenta menos de 30 anos. Ele me cumprimenta e me explica o cardápio.

Esclarece as dúvidas mais comuns, geralmente sobre o queijo italiano taleggio, primo distante do brie francês, ou o coleslaw, uma saladinha de repolho. "Tem gente que pergunta até o que é shimeji, acredita?", conta.

Pede atenção ao ponto da carne. São cinco variações entre o mal e o bem passado. "Pode falar que 'ao ponto' vem sangrando. Aí alerta quem não gosta", recomenda, pedindo para que se evite substituições que descaracterizem o prato original.

Mais tarde eu descobriria que é em vão. Uns 90% dos comensais mudam algum item. Ouço uma garota reclamar que seu sanduíche ficou seco, ao que a amiga responde: "mas você tirou a cebola caramelizada, é ela que dá o molhadinho, né?". Concordo em silêncio.

Enquanto não chega a hora de subir as portas, é preciso montar as mesas lá fora, limpar talheres e, nunca imaginei, as bisnagas de pimenta, ketchup e mostarda. Cumpro a tarefa ao lado de Felipe, um rapaz magro, alto e de sorriso fácil.

Distribuímos condimentos e guardanapos, mas os saleiros só nas mesas de dentro (há passantes que roubam na cara dura).

É hora de decorar a numeração das mesas para vincular aos pedidos no tablet. O sistema tem seus truques, mas é um aliado. Quando finalizamos o pedido, pula um papel na cara do chapeiro. Fico imaginando como funcionava na era do bloquinho e caneta.

A lição final é sobre a distribuição do salão. Os lanches saem do meio; as bebidas da frente do balcão, e as entradas e sobremesas lá do fundo. Quem cuida das mesas naquela área entrega por ali, e, se estiver tranquilo, ajuda um companheiro em apuros.

Os últimos preparativos incluem passar pano nas mesas mais uma vez —o pano com álcool é o nosso melhor amigo. Luzes acesas, Lucas liga a música, e o lugar se enche da vida que faltava. Sinto que esqueci metade das instruções. O outro garçom encarregado de me acompanhar é Gustavo, de barba comprida, boné e jeito sossegadão.

Não tardam a chegar as primeiras clientes. Elas trocam presentes e conversam, sem se interessar pelo cardápio que entreguei. Percebo que um bom garçom precisa entender o tempo de cada mesa.

O desafio maior é saber qual lanche pertence a quem. Saem da chapa em ordem de ponto da carne, do mal passado ao bem. Às vezes, nem os clientes se recordam do próprio pedido.

Quando noto, a primeira hora de operação já passou, e só cometi um equívoco leve, ao enviar um refrigerante zero quando deveria ser normal. O erro é nosso terror, e para evitá-lo checamos mais de uma vez antes de entregar os pedidos.

Entre as 12h30 e as 14h30 existe um pico que quase nos deixa malucos. Gustavo me ensina que a solução é antecipar as necessidades. "O mais demorado é entregar a conta e cobrar. Dá uma olhada no que os outros precisam e resolve antes", sugere. Dinheiro e divisão individual complicam um tanto os pagamentos.

Com a prática, o trabalho se torna automático, e me concentro em ser simpático. "Está gostando?", questiona Felipe, contando que ficou nervoso no primeiro dia, e que me saí bem. Já me sinto parte do time, mas costas e pernas latejam.

Faltando 15 minutos para fechar, torço para que não chegue mais ninguém. Um minuto mais tarde, um casal se senta na mesa de fora. Perguntam se pediram batata frita, e eu respondo que não. Sinal de que não devem demorar. O casal se despacha rápido e nosso turno se encerra. Já posso fechar a conta.

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