Padeiro alérgico a farinha se tornou o único bibliotecário de pães do mundo todo

Belga Karl De Smedt, que esteve no Brasil, cuida de um acervo com 122 massas de 21 países

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Edison Veiga
Sankt Vith (Bélgica)

O belga Karl De Smedt, 48, tem uma profissão única no mundo: bibliotecário de pães. Ou, para ser mais exato, bibliotecário de massas madres.

Para quem não é do meio, vale a breve explicação. Massa madre —ou levain, ou sourdough— é o fermento natural utilizado historicamente para a produção de pães. E, nos últimos anos, seu emprego vem sendo muito valorizado inclusive por aqueles que cultivam a panificação como hobby.

Como esse tipo de fermento tem variações de um lugar para o outro, por causa dos micro-organismos presentes na atmosfera ou mesmo pela maneira de seu preparo e cuidados, De Smedt teve há sete anos a ideia de fazer uma biblioteca única para catalogar esse material.

Em outubro de 2013, a pequena cidade de Sankt Vith, no interior da Bélgica, inaugurou a primeira e única instituição do mundo dedicada a preservar essas amostras, bem como suas receitas e histórias.

O acervo começou com 43 massas madres. Hoje são 122 massas de 21 países. Quatro delas brasileiras —integram a coleção as massas madres das padarias Basilicata, Brico Bread, Benjamin e Cepam, todas de São Paulo.

Ao mesmo tempo em que se tornou bibliotecário do pão, De Smedt virou um caçador pelo mundo. “Eu já estive em mais de 50 países em busca de massas madres”, conta ele, em entrevista à Folha.

No site da biblioteca, ele incentiva entusiastas do mundo todo a catalogarem suas massas madres, com características e histórias. E, não raras vezes, acaba sendo estimulado a viajar para conhecer essas receitas in loco e, assim, incorporar novas massas ao acervo.

Toda a iniciativa é bancada pela multinacional belga de panificação Puratos, empresa da qual De Smedt é funcionário desde 1994.

O bibliotecário do pão conta que, quando criança, queria mesmo era ser confeiteiro —e não padeiro. Acabou estudando panificação em Bruxelas e, depois de trabalhar como confeiteiro durante seis anos em uma loja da cidade, viu a oportunidade de ingressar na Puratos.

Durante um ano e meio trabalhou na cozinha-laboratório da empresa, realizando testes de produtos. “Foi um período muito interessante. Aprendi muito sobre o processo de cozimento, a influência dos ingredientes. E, acima de tudo, foi meu primeiro contato com a massa madre”, conta ele.

Mais tarde ele se juntou a uma equipe internacional da empresa e começou a viajar pelo mundo, conhecendo iniciativas em outros países. De certa forma, era quando, sem que ninguém soubesse, estava entrando no forno o projeto que se tornaria a biblioteca da massa madre.

Em 2002, veio o baque. De Smedt se tornou alérgico a farinha. Acabou afastado da cozinha e se converteu ao mundo corporativo. “Passei a criar cursos de treinamentos”, exemplifica.

Ele diz que sente falta de fazer pães. “Compenso assando no fim de semana, para a família”, conta ele, que aí toma cuidados para não sofrer com os efeitos da farinha. “Sou alérgico principalmente à farinha de centeio. Evito o máximo que posso. Sinto dificuldades para respirar, uma crise de asma.”

No começo deste ano, quando ministrava um workshop para colegas, descuidou-se. “Eles usaram muita farinha de centeio. Foi assustador. Precisei ser levado de ambulância para o hospital”, relata.

Em suas andanças pelo mundo, algumas histórias marcaram mais De Smedt pela curiosidade. “O que mais me impressionou até hoje é a história da Corrida de Ouro de Kondike”, relata ele. Sua expedição pode ser vista no vídeo abaixo.

Ele viajou para o noroeste do Canadá para conhecer a massa madre cultivada desde a corrida do ouro da região, quando cerca de 100 mil garimpeiros migraram para lá, entre 1896 e 1899. “A massa desempenhou um papel muito importante para a sobrevivência deles”, conta. “Será muito difícil encontrar uma história tão boa.”

Considerando as receitas, De Smedt destaca as massas recolhidas em Guadalajara, no México, como uma das mais curiosas. O fermento é refrescado com cerveja, limão e ovos. “Bem inusitado”, comenta. Na Grécia, ele documentou uma receita feita com água de manjericão. E também há uma versão japonesa de massa madre que leva arroz.

Ele costuma postar essas curiosidades em sua conta no Instagram. E acompanha com cuidado as hashtags relacionadas ao mundo da panificação natural, ciente de que muita história ainda existe para ser descoberta.

No início de julho, Karl De Smedt esteve no Brasil. Em sua quinta visita ao país, participou do evento Taste Tomorrow, realizado pela Puratos no pavilhão da Bienal de São Paulo, no parque Ibirapuera, com acesso restrito a empresários do ramo e a convidados.

Orgulho nacional, o pão de queijo —que, tecnicamente, não é um pão, porque prescinde do fermento— já é velho conhecido dele.  

“Em 1997, fiz muitos deles na Bélgica, pois estávamos desenvolvendo um produto para isso”, lembra. “Eu amo pão de queijo, mas de fato não se trata de uma aplicação de massa madre, a menos que alguém tente desenvolver uma receita para isso. Um novo desafio? Quem está interessado em se juntar a mim nessa busca?”, provoca ele.

De Smedt cita as quatro amostras brasileiras que já constam do acervo e antecipa que gostaria de encontrar mais alguma coisa genuinamente brasileira. “Será que não há alguma tribo indígena usando alguma coisa específica? Algo na Amazônia com um processo especial?”, pergunta.

A biblioteca da massa madre, assim como um bom fermento, deve crescer bastante ainda.

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