Com melhor safra no pior dos anos, vinhos de 2020 chegam ao mercado

Verão sem chuvas possibilitou colheita com qualidade inédita no Uruguai e no sul do Brasil

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Fiesta dela Vendimia na vinícola Garzón, próximo a Punta del Este, no Uruguai, em 7/3/2020 Flavio Servetto/Divulgação

Punta del Este (Uruguai)

Foi o pior ano das nossas existências. Difícil discordar dessa afirmação sobre o horripilante 2020 —pelo menos, enquanto a esperança da vacina dá o benefício da dúvida para 2021. O ano passado foi um ano tétrico em quase tudo para quase todo mundo.

Menos para o vinho.

Para o vinho sul-americano, 2020 foi um ano espetacular. O Uruguai e o sul do Brasil, em especial, colheram uma safra histórica. Talvez a melhor safra de todos os tempos.

Para o bebedor de vinho, uma boa notícia no meio de tanta desgraça: as garrafas de 2020 já começaram a chegar.

As condições climáticas do verão passado foram ideais para a colheita da uva vinífera. Enquanto a peste ainda era só ameaça, deu tempo até para comemorar. A safra das safras merecia a festa das festas. Teve. E eu estava lá.

Convidados cortam cachos de uvas na festa da colheita da vinícola Garzón, próximo a Punta del Este, no Uruguai, em 7/3/2020 - Flavio Servetto/Divulgação

Colhi um ou dois cachos de uva na Garzón, vinícola mais moderna e mais rica do Uruguai. Também é a mais premiada, apesar de extremamente jovem —as primeiras mudas de videira chegaram em 2008, a primeira safra é de 2010, e a sede de enoturismo abriu ao público em 2016.

A bodega foi construída por Alejandro Bulgheroni, magnata argentino do petróleo, a 18 quilômetros do Oceano Atlântico, perto de Punta del Este. Primeira vinícola da região que leva seu nome, a Garzón inaugurou um terroir com influência marítima e o solo rochoso —ainda hoje, a produção de vinhos uruguaios se concentra em Canelones, nos arredores de Montevidéu.

A sede da fazenda conjuga a vinícola em si —onde as uvas são processadas— com loja e um restaurante do chef argentino Francis Mallmann. Os fundos da edificação têm uma enorme alpendre com vista para os vinhedos.

É tudo impecavelmente limpo e arrumado na Garzón —inclusive os lotes geométricos sobre as colinas a perder de vista. Já visitei muitos vinhedos: sempre há um trator fora de lugar, uns caixotes feios empilhados num canto, algum elemento a denotar a rusticidade da lida rural. Lá, não.

Na Garzón, Bulgheroni deu vida à fantasia campestre das revistas de decoração. Sua estrutura de alto luxo atende um público pouco disposto a encarar lama e mosquitos.

Jantar para 300 pagantes na festa da colheita da vinícola Garzón, próximo a Punta del Este, no Uruguai, em 7/3/2020 - Flavio Servetto/Divulgação

Há um ano, os vinhedos receberam cerca de 300 convidados na última festa da colheita antes da pandemia de Covid-19. Cada um deles pagou US$ 250 (R$ 1.400) por um pacote com coquetel no parreiral, vinho à vontade e um jantar preparado por Mallmann.

O coquetel dava direito à colheita simbólica. Munidos de um cesto de palha e uma tesoura, os convidados se divertiam ao desbastar as videiras mais próximas da sede da vinícola.

A colheita para valer já estava quase encerrada. Em princípios de março, só restavam poucas parreiras de marselan, uma variedade tinta de maturação tardia. A equipe técnica da Garzón celebrava uma safra espetacular.

“Tivemos uma boa quantidade de chuvas na primavera”, conta o enólogo Germán Bruzzone. “E o verão foi seco, o que permitiu o desenvolvimento e a maturação ideais das uvas.”

A padroeira da safra 2020 atende pelo nome de La Niña. O fenômeno climático praticamente zerou, nos primeiros meses do ano, as chuvas abundantes no Uruguai e no sul do Brasil. Alterou menos a viticultura nas regiões andinas de Chile e Argentina, onde já chove pouco nessa época.

No Brasil e no Uruguai, as chuvas de verão são um problema para a indústria do vinho. Os cachos já estão formados, e só resta esperá-los amadurecer. Quando chove nesta etapa, a planta fica suscetível à ação de fungos que podem apodrecer a fruta. Em vez de pagar para ver, os enólogos optam pela colheita antes da maturação completa —o que compromete a qualidade do vinho.

Em 2020, a colheita aconteceu no tempo certo, sem preocupações. “Foi a melhor safra de todos os tempos”, comemora André Gasperin, presidente da Associação Brasileira de Enologia. “Além do tempo seco, tivemos grande amplitude térmica [diferença entre as temperaturas máxima e mínima].” Isso, segundo Gasperin, confere maior complexidade aromática ao vinho.

O vinho das uvas que eu colhi no Uruguai ainda está por lá. Os primeiros exemplares da safra a aportar no mercado são os brancos e rosés, de linhas mais simples, para serem bebidos frescos.

“Os tintos passam por um processo fabril diferente, que demora um pouco mais”, explica Bruzzone, da Garzón. Lá, todos os vinhos tintos têm alguma maturação em barrica de carvalho. Isso é uma opção da empresa, não uma etapa obrigatória na produção.

Mesmo assim, até os tintos jovens, sem passagem por madeira, precisam de uma maturação mais longa. Só o tempo amansa os taninos presentes na casca da uva —essas substâncias provocam sensação adstringente, “amarram” a boca feito banana verde.

Os vinhos tintos mais baratos de 2020 devem começar a chegar no inverno; espere para os próximos anos os rótulos especiais dos vinhedos uruguaios e brasileiros. Enquanto isso, celebre o que há para celebrar em 2020 com a seleção de brancos e rosados indicados abaixo.

Chafariz do povoado com gelo e vinhos à vontade na festa da vinícola Garzón, próxima a Punta del Este, no Uruguai, em 7/3/2020 - Flavio Servetto/Divulgação

Por falar em celebração, a festa no Uruguai se transferiu, ao anoitecer, para Pueblo Garzón —um povoado parado no tempo, com ares de cenário de cinema. Na praça central do vilarejo, Francis Mallmann montou uma gigantesca cozinha ao ar livre. Também encheu o chafariz com gelo e garrafas de vinho.

Lá, ele executou para distinta plateia seu espetáculo da cozinha do fogo. Ou melhor, dos sete fogos: churrasqueira, chapa, forno de barro, “asador” (fogo de chão), caldeirão sobre lenha, “infernillo” (churrasqueira com outra camada de brasas numa superfície acima do alimento) e rescaldo (cozimento direto nas cinzas quentes).

Prato de mexilhões na festa da colheita da vinícola Garzón, próximo a Punta del Este, no Uruguai, em 7/3/2020 - Flavio Servetto/Divulgação

O seleto público se distribuiu em longas mesas sem cobertura espalhadas pela praça. Fomos servidos de empanadas, cordeiro, mexilhões, até salada de pêssegos preparadas no fogo.

Com tanta comida excelente (e vinhos idem), qualquer preocupação passava ao largo. Lembro-me de ter brindado com Celso La Pastina, dono da importadora que traz os vinhos da Garzón para o Brasil.

Foi a última vez em que vi o Celso. Ele morreria de Covid-19 no dia 20 de agosto de 2020 —esse ano lazarento, desgraçado, miserável. Por Celso e por todos nós, vale festejar cada coisa boa que nos atravessa o caminho. Como os ótimos vinhos da safra 2020.

O jornalista Marcos Nogueira viajou ao Uruguai a convite da Bodega Garzón

‘Asador’ do chef Francis Mallmann na festa da colheita da vinícola Garzón, próximo a Punta del Este, no Uruguai, em 7/3/2020 - Flavio Servetto/Divulgação

Grande safra de 2020

Garzón Pinot Grigio de Corte
Maldonado, Uruguai
Tipo: branco
Uva: pinot grigio
Quanto: R$ 118 em worldwine.com.br

Garzón Pinot Rosé de Corte
Maldonado, Uruguai
Tipo: rosé
Uva: pinot noir
Quanto: R$ 118 em worldwine.com.br

Casa Perini Sauvignon Blanc
Serra Gaúcha, Brasil
Tipo: branco
Uva: sauvignon blanc
Quanto: R$ 57,60 em loja.casaperini.com.br

Amitié Cuvée Brut
Serra Gaúcha, Brasil
Tipo: espumante branco brut
Uvas: chardonnay e pinot noir
Quanto: R$ 109,90 em sonoma.com.br

Miolo Seleção Rosé
Campanha Gaúcha, Brasil
Tipo: rosé
Uva: cabernet sauvignon e tempranillo
Quanto: R$ 39,90 no Pão de Açúcar

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