Restaurante Soteropolitano faz 'reviravolta' para resistir à pandemia

Julio e Deborah Valverde fecham as portas, mas têm moquecas para delivery

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São Paulo

Doze mil —esse é o número aproximado de restaurantes, bares e lanchonetes paulistanos que fecharam as portas desde o início da pandemia, segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel-SP).

Por trás do número frio se esconde uma legião de proprietários, cozinheiros, garçons e auxiliares que têm rostos, histórias e famílias, com seus sonhos desfeitos e planos interrompidos.

E também uma turma resiliente, que sacode a poeira e resiste como pode —como Julio Valverde, fundador do restaurante Soteropolitano, que está recomeçando aos 77 anos.

Deborah Valverde, 67, com o marido Julio Valverde, 77, ao fundo. Eles levaram para casa o portão do antigo ponto, onde frequentadores penduravam fitinhas do Nosso Senhor do Bonfim - Karime Xavier/Folhapress

Desde que entregaram o ponto alugado na Vila Romana, há dois meses, ele e a mulher, Deborah, 67, a Dedinha, deram início a um projeto que mais parece o de um casal no início da vida em comum: reformaram a edícula da casa onde vivem, no Jaguaré, e a transformaram em uma cozinha profissional caprichada.

Nesse novo espaço e somente aos domingos, sob a proteção do portão decorado com fitas do Nosso Senhor do Bonfim trazido do Soteropolitano, Valverde prepara as moquecas e outras iguarias baianas que fizeram a fama de seu restaurante, inaugurado em 1995.

“Fizemos uma reviravolta total. Meus filhos, genro e nora ajudam na divulgação, porque sou analfabeto nessa prática da computação. Mas sou eu que continuo à frente da cozinha”, conta Valverde.

Os pratos, que devem ser encomendados durante a semana no site do restaurante (www.restaurantesoteropolitano.com.br), são entregues em domicílio —mas a família não trabalha com aplicativos de delivery.

“Descobrimos que repassavam o mínimo para os motoboys, por isso mudamos o sistema. Fizemos amizade com alguns entregadores e os contratamos diretamente, repassando o valor integral do frete”, conta Deborah.

O gesto reflete bem a atmosfera que Valverde imprimiu à casa, que funcionou por 17 anos na Vila Madalena, antes da mudança para a Vila Romana.

Poeta, compositor e amante das artes, ele transformou o Soteropolitano, nas próprias palavras, em um “espaço de resistência cultural e política”.

Tudo começou a partir da ideia de amigos, dispostos a dar uma força para as finanças do restaurante, e acabou se tornando a identidade do lugar.

“O Soteropolitano viveu com dificuldades financeiras a vida inteira. Certa vez, em uma das crises mais agudas, me sugeriram criar uma confraria para angariar fundos. Nos reuníamos uma vez por semana e sempre havia um evento cultural, com música, poesia ou palestras de artistas”, lembra.

Nas reuniões da confraria, a comida nunca era baiana —e Valverde se orgulha de jamais ter repetido o cardápio. Mas não adianta, sua paixão passa mesmo pela cozinha do dendê.

Um dos segredos que garantem o sucesso de sua culinária, ele entrega, é adicionar o coentro no início dos preparos. Mas a erva está sempre presente, algo caro para um baiano. “A gente come coentro até com farinha!”, fecha questão.

A moqueca que mistura peixe, camarão e polvo é sua marca registrada e, ele admite, sofreu uma adaptação para agradar ao paladar do paulistano: o peixe em postas, que ele prefere porque pele e espinhas agregam mais sabor, foi trocado por filés.

“Me pediram outras concessões, como servir sanduíches e batata frita para crianças, mas essas eu nunca fiz”, encerra a conversa.

Para Juliana Valverde, filha de Julio e Deborah, ter as contas no azul nunca esteve entre as principais preocupações do pai.

“Ele não encara o restaurante como um simples negócio, mas como um espaço singular que vai além das relações impostas pelo capitalismo. No Soteropolitano, seu Julio sabe o que faz, com quem faz e para quem faz, e sempre fez questão de saber”, ela explica.

Os preparos são demorados e levam vários dias. Mesmo no formato atual, Valverde começa a executar as etapas iniciais das receitas às quartas-feiras e só as finaliza aos domingos.

Na semana do Dia dos Namorados, quando fez entregas excepcionais no sábado (12), o chef preparou casquinha de caranguejo com farofa de manteiga, acarajé, três opções de moquecas, bobó de camarão e duas versões de abadejo no caju, com e sem camarão.

Com entrada e prato principal, a refeição para dois custa em média R$ 280.

Quem cuida das embalagens é Deborah, com um capricho que tem rendido elogios. Os saquinhos de celofane que embalam os sequilhos da Bibi, feitos pela neta do casal, de sete anos, são arrematados com fitinhas do Bonfim.

Pergunto se o casal pensa em ter um restaurante convencional novamente, com salão onde a família receba o público e seu Julio possa dar suas palinhas ao violão —outra prática que, durante a pandemia, foi transferida para lives no Instagram.

O sotaque baiano dá força à resposta: “Rapaz... É uma pergunta muito séria, viu? Realmente me faz falta esse convívio com as pessoas”.

Ao final da conversa, ele finalmente dá uma pista do que vem por aí: “Já estou pensando em reformar um espacinho da minha casa, onde cabem umas quatro mesas, para fazer miniconfrarias”. Seu público fiel pode suspirar aliviado.

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