Prato típico do inverno, cozido varia conforme país de origem

Versões regionais no Brasil vão de barreado paranaense a guisado nordestino

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São Paulo

A técnica de colocar carnes, vegetais e temperos em uma só panela, e levá-los ao fogo por longas horas até que se transformem em um alimento caldoso e perfumado, é uma das mais antigas da história da humanidade —pode ter surgido no período Neolítico, afirma a pesquisadora Maria Lucia Gomensoro em Pequeno Dicionário de Gastronomia (Objetiva, 436 páginas, R$ 149).

Chegou ao Brasil pelas mãos das mulheres portuguesas e, aqui, ganhou temperos africanos e indígenas para assumir diferentes feições regionais. Mas a receita não é exclusividade portuguesa —basta procurar direitinho para descobrir que cada país e cada cultura tem um cozido para chamar de seu.

A versão servida pelo português Eduardo de Castro no restaurante Casa do Chef, no Morumbi (R$ 150, para dois), é tradicional de Trás-os-Montes. Nascido em Alfândega da Fé, ele mistura carnes bovina e suína, toucinho, chouriço, cenoura, batata, repolho, alho e cebola.

Eduardo Costa serve a variação portuguesa do cozido na Casa do Chef - Karime Xavier/Folhapress

“O caldo do cozimento, nós portugueses usamos para preparar o arroz e tomar como um consomê, em uma tigelinha de barro chamada malga”, explica.

Outros países europeus têm versões parecidas, do pot-au-feu francês ao bollito misto italiano, apresentado ao paulistano pelo restaurante do hotel Ca’d’Oro —o prato, que também faz parte do cardápio do Parigi, às quartas e domingos (R$ 180), e do Gero, às sextas-feiras (R$ 165), chega ao salão no tradicional carrinho, à moda Ca’d’Oro.

Já o cozido “herança das mulheres da minha vida”, que a chef Janaína Rueda serve às quartas no Bar da Dona Onça (R$ 69), inspira-se no puchero espanhol. Abrasileirado, não leva grão-de-bico, como a receita original, e incorpora legumes daqui, como chuchu e quiabo.

“Eu morava com minha mãe, minha madrinha e minha avó, de ascendência espanhola, e toda semana comíamos esse cozido. Como as três trabalhavam muito, era preparado na panela de pressão, como faço até hoje.”

Alguns cozidos de origem europeia se mantiveram como um segredo familiar e raramente aparecem em restaurantes. É o caso do cholent judaico, que praticamente se prepara sozinho por ser o prato típico do Shabat, período reservado ao descanso, que vai do pôr do sol de sexta-feira ao mesmo horário do sábado.

Além de carnes e legumes, leva feijão e cevadinha.

“A gente põe tudo em uma panela grande e deixa no fogo bem baixo durante a noite toda, para comer no dia seguinte”, ensina Eliana Guttman, 67, paulistana de família polonesa.

Cozido típico da cidade de Arequipa, no Peru, o chupe foge da combinação clássica carnes e legumes —surgiu como uma tradição da Semana Santa e, por isso, tem como base frutos do mar.

“É como uma sopa espessa, que leva camarões de água doce, batatas, queijo fresco, favas, ervilhas, milho e abóbora”, explica o chef peruano Victor López, do Cena Cozinha, especializado em eventos e pratos por encomenda.

Variações são permitidas. López faz uma versão de peixe (R$ 120, para dois) e outra vegetariana (R$ 90, para dois). Como não encontra por aqui a erva huacatay, a menta peruana, adota como substituta a hortelã —só não podem faltar os ajís, pimentas andinas bem ardidas e aromáticas.

O Japão também tem seu cozido. Adaptação do curry inglês, o karê é servido no norte do país, especialmente nas estações frias, e se destaca pela pimenta em porção generosa.

“As casas de karê costumam oferecer cinco níveis de picância e quem come a última não paga a conta. Tentei e não consegui”, conta Thiago Bañares, chef do restaurante Kotori.

O karê que ele prepara na casa, servido com gohan e ovo frito (R$ 52), leva paleta de porco, caldo de frango, cenoura e batatas, parte delas amassadas para engrossar o caldo, temperado com curry, muita cebola, shoyu, cardamomo e cominho.

Quando se percorre o Brasil, a fartura de cozidos não é menor. Típico do Paraná, o barreado mistura carne bovina, barriga suína e ervas, preparadas em panela de barro selada com goma feita de farinha de mandioca, para que o vapor não escape.

Reza a lenda que a receita se popularizou no famoso Carnaval de rua da região —bom para repor as energias, o prato ia cozinhando enquanto as famílias se divertiam.

Há controvérsias sobre a origem da técnica. Luís da Câmara Cascudo, autor de História da alimentação no Brasil, vê influência dos índios, que enterravam a panela sob a fogueira. Mas a chef Mara Salles, do restaurante Tordesilhas, lembra que a ideia pode ter sido trazida pelos imigrantes açorianos —o cozido das furnas, da Ilha de São Miguel, é feito em panela enterrada em solo vulcânico.

“Como o lacre na tampa deixa escapar muito pouco ar, os sabores ficam represados. A tradição, no Paraná, é comer com farinha de mandioca muito fina, para formar um pirão no próprio prato, e banana”, explica a chef, que mantém o prato no cardápio do Tordesilhas, inclusive para delivery (R$ 75 no Ifood).

No interior de São Paulo, o afogado é cozido de carnes e batata típico da Festa do Divino, em São Luiz do Paraitinga. No século 19, os ingredientes eram doados pela população, que esperava em troca bons frutos na plantação —até hoje, o prato é distribuído gratuitamente no dia da festa.

“Cansei de entrar na fila com meu irmão, com pratinho na mão, e sentar na beira do rio para comer”, lembra a chef Heloísa Bacellar, que cresceu na cidade e aprimorou a receita. “Sempre foi uma coisa meio tosca, cozida em tachos imensos pelos homens. Eu faço com maminha bem limpa e capricho no refogado. O segredo é cozinhar por muito tempo, até a carne desmanchar.”

Quando se chega ao Nordeste, os cozidos também se sobrepõem. No cardápio do restaurante Panelão do Norte, na Penha, fazem sucesso a panelada à moda do Nordeste, com fava, bucho, mocotó, calabresa, jabá, bacon, batata e cenoura (R$ 103, para dois) e a galinhada caipira, na qual a ave cozinha na mesma panela com arroz, tomate, pimentão, cebola e ovo (R$ 96, para dois).

“Aprendi com a socióloga Maria de Lourdes Ramalho que os cozidos nordestinos são herança das cozinhas portuguesas e judaicas”, explica o chef Carlos Ribeiro, consultor do restaurante e pesquisador da culinária brasileira.


Receitas

COZIDO À MODA DE TRÁS-OS-MONTES

(Casa do Chef Eduardo de Castro)

4 porções

Ingredientes

2 folhas de louro; 1 ramo de tomilho; 1 cebola cortada em quatro; 3 dentes de alho; 6 grãos de pimenta branca; sal a gosto; 200 g de acém; 200 g de costela suína; 150 g de toucinho defumado; 1 chouriço português; 1 maço de couve-manteiga; 1 talo de alho-poró; 4 cenouras; 1 repolho; 8 batatas médias; 1 nabo; 200 g de coxas e sobrecoxas de frango (cozidas à parte).

Modo de fazer

Em uma panela com bastante água, coloque o louro, o tomilho, a cebola, o alho, a pimenta branca e o sal. Quando ferver, junte todas as carnes (menos o frango) e cozinhe por 4 horas. Retire as carnes e reserve.

Em outra panela, com metade do caldo do cozimento (coado) e outra parte igual de água, cozinhe os legumes inteiros até que estejam macios. Junte então as carnes e o frango, acerte o sal e sirva com arroz branco, cozido no restante do caldo do cozimento das carnes (coado).

AFOGADO

(Heloisa Bacellar)

6 porções

Ingredientes

200 g de bacon em cubinhos; 1 cebola grande picada; 2 dentes de alho picados; 1 pimentão vermelho em cubinhos; 4 tomates sem pele nem sementes em cubinhos; 2 kg de maminha bem limpa em cubos de 2 cm; 3 litros de água fervente; 1 folha de louro; sal e pimenta-do-reino a gosto; ½ xícara de ervas frescas (hortelã, manjericão, salsinha e cebolinha); 6 bananas-nanicas maduras; 3 xícaras de farinha de mandioca fina; óleo para refogar.

Modo de fazer

Unte o fundo de uma panela grande com um pouco de óleo e doure ligeiramente o bacon. Junte a cebola, o alho, o pimentão e o tomate e espere murchar. Acrescente a carne, mexa até dourar e então adicione a água, o louro, sal e pimenta. Quando ferver, retire com a escumadeira a espuma que se formar na superfície. Abaixe o fogo e cozinhe por três horas com a panela semitampada, até que a carne esteja desmanchando. Junte então as ervas e sirva com as bananas cozidas, farinha e molho de pimenta.

CHUPE DE PEIXE

(Victor López, Cena Cozinha)

4 porções

Ingredientes

2 colheres (sopa) de azeite; 1 colher (sopa) de manteiga; 1 cebola branca picada; 2 dentes de alho picados; ½ xícara de ají amarillo; ½ xícara de ají panca; sal e pimenta-do-reino a gosto; 4 colheres (sopa) de abóbora ralada; 2 colheres (sopa) de extrato de tomate; 1 litro de caldo de peixe; 2 batatas cozidas em cubos; 1 xícara de milho; ½ xícara de ervilhas frescas; 1 colher (sopa) de orégano fresco; ½ xícara de penne; 4 filés de peixe branco empanados; queijo branco em cubos a gosto; 4 ovos fritos em manteiga; croutons a gosto.

Modo de fazer

Em uma panela, no fogo baixo, doure a cebola no azeite com a manteiga. Adicione o alho, refogue um pouco e acrescente os ajís, o sal e a pimenta-do-reino e cozinhe por dez minutos. Incorpore a abóbora ralada e o extrato de tomate, adicione o caldo de peixe, as batatas, o milho, as ervilhas frescas e o orégano e deixe ferver por mais dez minutos. Por fim, acrescente o macarrão e deixe cozinhar por seis minutos. Sirva com o peixe empanado, o queijo, os ovos e os croutons.

COZIDO BRASILEIRO

(Janaína Rueda, Bar da Dona Onça)

2 porções

Ingredientes

200 g de patinho em cubos; sal a gosto; pimenta-do-reino a gosto; 30 ml de azeite; 1 coxa grande de galinha caipira; 100 g de linguiça artesanal; ½ cebola pequena picada; 2 dentes de alho picados; 1 litro de caldo de legumes; 50 g de cenoura em rodelas; 50 g de batata em rodelas; 50 g de chuchu em rodelas; 30 g de quiabo em rodelas; salsinha e cebolinha a gosto.

Modo de fazer

Na véspera, tempere a carne com sal e pimenta e deixe marinando na geladeira. Aqueça bem o azeite e doure a carne, pingando um pouco de água para soltar o caldo. Retire da panela e reserve. Na mesma panela, doure o frango, pingando um pouco de água também, e reserve o frango e o caldo. Repita a mesma operação com a linguiça.

Na mesma frigideira, doure a cebola e o alho, adicione o caldo de legumes para soltar o sabor da crosta que se formou no fundo e leve tudo à panela de pressão, junto com as carnes e os caldos, e cozinhe por 25 minutos a partir do momento em que começar a apitar.

Desligue, retire a pressão, abra a panela, acrescente a cenoura e deixe ferver (sem pressão) por dois minutos. Adicione então a batata e o chuchu e ferva até que estejam macios. Depois, faça o mesmo com o quiabo. Finalize com salsinha e cebolinha e sirva.

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