Iniciativas pelo país ampliam acesso a alimentos saudáveis

Mapa mostra ações sustentáveis e inclusivas criadas ou alargadas na crise atual

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Andrea Vialli
Ubatuba (SP)

De um lado, a Covid-19 deixou mais brasileiros sem quantidade e qualidade ideais de comida. De outro, fez emergir uma onda de ações de apoio a populações vulneráveis e de articulações que aproximam produtores e consumidores e criam outros canais de distribuição de alimentos.

A Ação Coletiva Comida de Verdade, rede formada por 13 organizações com o objetivo de promover segurança alimentar, mapeou 310 iniciativas de sistemas alimentares inclusivos e sustentáveis surgidas ou ampliadas na pandemia de norte a sul do país —de hortas a cooperativas, passando por campanhas de financiamento coletivo.

Do total de experiências, a maioria (58,9%) é relacionada à comercialização, como feiras agroecológicas e sistemas de entrega de cestas da agricultura familiar; 31% são ações solidárias para dar a grupos vulneráveis acesso a alimentos e 7,5% são fruto de políticas públicas.

Foto mostra alguns legumes sobre um pano lilás.
Alimentos cultivados de maneira orgânica - Gabriel Cabral/Folhapress (Produção Bárbara Kramer)

A maior parte das iniciativas são protagonizadas por organizações populares, redes, coletivos e movimentos sociais do campo e da cidade.

"A insegurança alimentar já era um processo que vinha ocorrendo no Brasil, mas foi agravada pela pandemia. Ao mesmo tempo, houve uma reação de atores que, embora marginalizados das políticas públicas, ocuparam esses espaços", diz Potira Preiss, pesquisadora do programa de pós-graduação em desenvolvimento regional da UNISC (Universidade de Santa Cruz do Sul).

Ocupar um espaço público degradado foi justamente o ponto de partida para a criação da horta popular agroecológica Dandara, no bairro de Peixinhos, divisa entre Recife e Olinda (PE).

O local, onde funcionou um matadouro, tinha virado depósito de lixo. Movimentos sociais propuseram à prefeitura de Recife e ao governo estadual, donos do terreno, ressignificar a área, e mobilizaram os moradores da comunidade Dandara, próxima ao local, em mutirões.

Limparam o terreno, prepararam os canteiros e começaram os plantios em agosto de 2020. Hoje a horta produz hortaliças, raízes e ervas, com 20 pessoas trabalhando em sistema de rotatividade, com a recompensa de levar a colheita para casa.

"A ideia era produzir alimentos para ajudar moradores a enfrentar a fome nessa fase, e ajudar a organizar a comunidade", diz Aniérica Almeida, coordenadora do Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá.

O Sabiá dá assistência técnica a agricultores que querem migrar da produção convencional para a agroecológica, e é um dos grupos que criou a horta, ao lado da Marcha Mundial das Mulheres.

Agora, o desafio é engajar mais a comunidade nos plantios e na manutenção do espaço, e estimular o consumo de alimentos da horta. "Fizemos oficinas para promover a alimentação saudável, muitos moradores não tinham o hábito de comer couve, por exemplo", diz Almeida.

O isolamento causado pela pandemia também ameaçou a segurança alimentar de povos indígenas. Isso levou o movimento de mulheres da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix Mulher) a levantar recursos para adquirir alimentos, materiais de higiene e ferramentas agrícolas destinados aos povos da TI do Xingu, que abriga 16 etnias.

Além de reunir doações de cestas, a Atix lançou campanha de financiamento coletivo que arrecadou R$ 140 mil desde junho de 2020, o que beneficiou 130 aldeias.

"Nossos parentes não estavam conseguindo plantar o milho e a mandioca para fazer o fubá e o beiju, que são a base da alimentação dos povos do Xingu. Não podíamos depender da ajuda da Funai, arrecadamos para garantir a autonomia", diz Watatakalu Yawalapiti, coordenadora da Atix Mulher, que tem sede em Canarana (MT).

Algumas aldeias, que produzem e vendem itens como artesanato e mel, usaram o dinheiro para capital de giro, garantindo a subsistência de pequenos negócios. Agora, com o avanço da vacinação entre indígenas, a situação está mais controlada, diz a líder.

De acordo com a pesquisadora Potira Preiss, a maioria das iniciativas mapeadas pela Ação Coletiva Comida de Verdade teve foco na geração de renda (70%). O segundo fator de motivação foi buscar melhorar a qualidade da alimentação das pessoas (38%).

Entre as tendências provocadas e aceleradas pela pandemia está a digitalização dos canais de venda e distribuição de alimentos –e veio para ficar.

"Embora o acesso à internet no campo seja desigual, vimos as tecnologias de informação chegando com força, agricultores criando estratégias de comercialização e divulgação por meio de canais digitais, e um ‘boom’ do uso do Whatsapp", afirma Preiss.

Um exemplo disso é a Feira de Agricultores Ecologistas de Porto Alegre, a primeira orgânica do país, em funcionamento desde 1989.

Na pandemia, seguiu sendo realizada com restrições, mas os produtores sentiram o baque no faturamento. A saída foi reproduzir a tradição no ambiente digital: no site feiraecologica.eco.br, cada uma das 44 bancas do evento físico expõe seus produtos, entregues na região metropolitana de Porto Alegre. Há de legumes, frutas e hortaliças a pães, laticínios, sucos e doces.

A feira online começou a operar em março de 2021 e hoje responde por 20% das vendas. Francielle Bellé, coordenadora da Associação dos Agricultores Ecologistas e Solidários do Rio Grande do Sul, diz que o digital ajudou os agricultores em momento de incerteza. ‘‘Hoje eles sabem que podem escoar produtos também no digital", diz.

No Rio, o MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores) também recorreu aos canais virtuais para incrementar as vendas das feiras camponesas, criadas para comercializar produtos da agricultura familiar, em especial de assentamentos da reforma agrária no entorno da cidade.

Desde 2015 o movimento vendia em um site, mas a pandemia turbinou as vendas online. "Saímos de 20 cestas vendidas por mês para 200 por semana", diz Cristina Flores, coordenadora estadual do MPA. A venda permite a doação para famílias vulneráveis, com distribuição semanal de comida.

As cestas, que incluem produtos disponíveis no site cestacamponesa.com.br, são montadas no Raízes do Brasil, centro de abastecimento popular em Santa Teresa, região central do Rio.

No Acre, uma rede de solidariedade envolvendo agricultores e escolas do município de Marechal Thaumaturgo, a 550 km de Rio Branco, contribuiu para garantir o acesso das famílias a alimentos.

A solução foi utilizar o mecanismo já existente do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) que permite que 30% das aquisições de merenda escolar sejam feitas da agricultura familiar. O programa já estava em curso desde 2017 no município, mas ganhou reforço na pandemia. As compras foram direcionadas para 55 famílias produtoras da região, que forneceram feijão, arroz, frutas e ovos, e tiveram a produção garantida.

Com o fechamento das escolas na quarentena e muitas famílias em situação vulnerável, foi criada uma campanha para que os alunos das 30 escolas da cidade recebessem a merenda escolar em casa.

Segundo Marcos Santos de Souza, assessor da Secretaria de Meio Ambiente de Marechal Thaumaturgo, a iniciativa permitiu ainda melhorar a qualidade da alimentação dos alunos e suas famílias.

"Foi uma oportunidade de inserção dos produtos da agricultura familiar agroecológica na alimentação escolar, e contribuiu para a construção de hábitos alimentares. No lugar de biscoitos e sucos industrializados, vieram sucos de frutas locais como cupuaçu, graviola e maracujá."

O caderno especial Cadeias Alimentares contou com apoio do Instituto Ibirapitanga

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