Descrição de chapéu Cadeias Alimentares

Produção de comida per capita sobe no país, mas fome avança mesmo na fartura

Resultado de lavouras e pecuária aumenta mais que a população; insegurança alimentar é maior no meio rural

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São Paulo

A fome está na foto de pessoas catando ossos em uma caçamba e na estatística: não era tanta pelo menos desde 2004. No entanto, a produção da agropecuária aumentou praticamente sem parar desde então. O produto das lavouras e da pecuária cresceu mais do que a população; há mais matéria-prima de comida por cabeça ou boca, mesmo se descontada a quantidade destinada a exportações.

No caso de alguns produtos, a quantidade disponível por brasileiro é ao menos a mesma registrada em torno de 2013, período de fome mínima.

Esse paradoxo parece fácil de explicar, ao menos no que diz respeito a quantidades. Desde 2014, a pobreza aumenta. Há quem argumente que, ainda que a conjuntura dura pese muito, o predomínio econômico e político do agronegócio sustenta a estrutura que causa também a fome.

A contraposição simples entre agronegócio e agricultura familiar, porém, não ajuda a pensar o problema, porque existem variantes sob cada um desses rótulos. Por falar em mitos, a agricultura familiar não produz "70% dos alimentos" consumidos no país.

Neste século, aumentou no Brasil a produção per capita de soja, milho, trigo, de carne de boi, porco e frango, por exemplo, segundo contas feitas com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). No caso de arroz e feijão, a produção per capita diminuiu um pouco, mas a quantidade disponível para consumo doméstico é quase a mesma dos anos de fome mínima. A disponibilidade interna (produção mais importação menos exportação) de carne de frango e de porco é ligeiramente maior do que nos anos de maior segurança alimentar (próximos de 2013); a de carne de boi era a mesma até 2019, e menor em 2020.

Pesquisas do IBGE de 2004, 2009, 2013 e 2018 mediram o grau de insegurança alimentar no país. Com metodologia similar, completa a série uma pesquisa de 2020, feita pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), consórcio independente de pesquisadores.

A "insegurança alimentar" moderada e grave —fome ou quase isso— atingia 21,5% da população em 2004, foi a 10,3% em 2013, voltou a aumentar e chegou a 20,5% em 2020. É maior no meio rural, no Norte e no Nordeste.

Pessoas procuram por comida em caminhão com ossos e restos de carne no Rio de Janeiro
Pessoas procuram por comida em caminhão com ossos e restos de carne no Rio de Janeiro - Domingos Peixoto / Agência O Globo

A pobreza havia baixado de 25% da população em 2004 para 8,4% em 2014. Subiu para 11% na recessão de 2015-2016 e foi a 16% no início deste 2021 (sem o auxílio emergencial). No primeiro semestre, a renda per capita do trabalho da metade mais pobre do país foi um terço menor que a de fins de 2014 (dados do FGV Social). O número de pessoas com algum trabalho é o menor desde 2012 (IBGE.) Domicílios sem renda alguma vinda do trabalho são 28,5% do total (Ipea).

O valor médio do Bolsa Família é 16% menor do que em agosto de 2014, máximo da série. O PIB per capita caiu quase 11% de 2014 a 2020; ao fim deste 2021, a baixa ainda deverá ser de 7%.

Para piorar, o surto inflacionário é o terceiro maior do século; a carestia de alimentos, a maior desde 2003. A inflação mundial de alimentos em 30 anos só não é maior do que em meses de 2008 e 2011, segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura).

Nem sempre a carestia mundial e a brasileira coincidem: problemas climáticos e o preço do dólar podem piorar a situação aqui, como agora.

Gerd Sparovek, professor da Escola Superior de Agricultura da USP (Esalq) e o pesquisador Alberto Barretto, do Grupo de Políticas Públicas da Esalq, não acreditam que a estrutura de propriedade e produção agrícola sejam a causa recente da fome: mudam de modo mais lento que a conjuntura, para começar. Mas dizem que a falta ou o anacronismo de políticas públicas para o setor pioram o problema.

Os pesquisadores citam o PAA, Programa de Aquisição de Alimentos, que garante demanda para o pequeno produtor, movimenta economias locais, atenua a pobreza e a migração para cidades maiores.
Eles acham que estoques reguladores (compras governamentais) podem servir a estratégias pontuais para controlar crises de escassez (como a do arroz, no ano passado).

Walter Belik, professor aposentado de economia agrícola na Unicamp, é outro defensor de estoques, criticados pelos mais liberais. Ele defende um programa modernizado: em vez de acúmulo de grãos em silos, o governo deveria ter opções de compra para situações de escassez.

Renato Maluf, professor da UFRRJ e coordenador da Rede Penssan, e Regina Sambuichi, pesquisadora do Ipea e conhecedora de agricultura familiar, vão além no que diz respeito a intervenções.

Fome depende de conjuntura, mas também de desigualdade, criada em parte pela formação histórica, com concentração fundiária, dizem. É maior no campo, o que tem a ver também com falta de acesso à terra, encarecida e ocupada pela expansão da agricultura exportadora.

"O problema não é de produção, ponto, mas de produção, atendidos certos requisitos", diz Maluf. Isto é, produção com menos impacto ambiental, que aproveitaria culturas locais diversas, insumos e fontes de energia regionais, que preservaria circuitos locais de produção e comércio.

Tal modelo reduziria a sujeição do país a flutuações internacionais, o que ameaça o abastecimento e a segurança alimentar. Enfim, uma agricultura que não fosse fruto da mera regulação privada, que ocupa o vazio da falta de regulação estatal, processo acelerado pela aliança do agronegócio com o atual governo.

O orçamento do PAA tem sido reduzido pelos governos desde 2014. Em 2021, é de R$ 324 milhões, 0,03% do valor bruto da produção agropecuária. Mas faz diferença, dizem Maluf e Sambuichi, assim como o programa de cisternas em regiões áridas, e são apenas traços do que deveria ser uma política ampla de sustentação do agricultor familiar.

A grande agropecuária, de resto, tem privilégios, concordam vários pesquisadores. Apesar de acesso a mercados de capital, têm subsídios diretos por meio de crédito a juros abaixo de mercado e com escassa (e recente) contrapartida ambiental; têm isenções de impostos e perdões de dívidas. Contam com subsídios indiretos: incorporação de terra desmatada sem que se pague o custo ambiental, por exemplo.
Quanto à pequena agricultura, terá mais problemas para se sustentar. O lucro por área diminui, o que exige terras mais extensas associadas a investimento pesado em capital, tecnologia. Os donos envelhecem e, na sucessão, suas terras são fragmentadas e se tornam insustentáveis, diz Barretto.

O pesquisador afirma que classificar os produtores sob os rótulos agricultura familiar, não familiar, médios e grandes não contribui muito para explicar o que fazem, para onde vão e de que política precisam os muito diversos 5,1 milhões de estabelecimentos rurais do país.

A massa dos agricultores familiares produz pouco e é pobre. Na análise de Barretto, há um grupo de agricultores chamado de "vulneráveis". Trata-se de 3,2 milhões de propriedades, sendo que 81% delas são de agricultores familiares. Seu faturamento médio por ano é de alguns salários mínimos. Produzem cerca de 4% do ‘‘valor bruto da produção’’ (VBP) da agropecuária brasileira, segundo dados do Censo Agropecuário mais recente do IBGE.

Um outro grupo pode ser classificado como ‘‘empreendedor’’, com faturamento médio anual 70 vezes maior que o do grupo de vulneráveis. São 347 mil propriedades, das quais 70% pertencem a agricultores familiares. São responsáveis por 32% do VBP. Em termos de valor produzido, ficam atrás apenas da ‘‘elite’’, grupo constituído por 43 mil propriedades, responsáveis por quase metade do VBP.

Os pesquisadores não sabem dizer de onde surgiu a ideia disseminada de que a agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no país. Decano das estatísticas sociais e agrícolas, Rodolfo Hoffman demonstrou em nota técnica de 2014 que a conta não faz sentido. Como somar toneladas de alface, carne e uva?

Pelo valor da produção agropecuária, diz Barretto, o peso da agricultura familiar deve andar em torno de 23%, proporcional à área ocupada por esses produtores. Caiu entre os Censos de 2006 e 2017 (mais recente), principalmente na produção vegetal; na pecuária, faz 33% do valor produzido.

O caderno especial Cadeias Alimentares contou com apoio do Instituto Ibirapitanga

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