Fungo que dá no milho, mexicano huitlacoche entra no radar de chefs brasileiros

Geralmente tratado como praga, seu sabor lembra o dos cogumelos silvestres

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São Paulo

Imagine uma espiga de milho cujos grãos, ainda no pé, começam a escurecer e crescer de forma desordenada, como se estivessem inchados, a ponto de estourarem a palha.

Pois essa anomalia feiosa causada pelo fungo Ustilago maydis, que já fez muito produtor se desesperar com medo de perder a plantação, é considerada uma verdadeira iguaria no México. E já começa a entrar no radar dos chefs brasileiros. Seu nome: huitlacoche, também conhecido como trufa mexicana.

Huitlacoche cresce em espiga do Projeto Crioulo - Divulgação

Proprietário da Colheita Butique Sazonal Cozinha & Hospedaria, em Pinto Bandeira (RS), o chef Giordano Tarso pulou de alegria quando descobriu uma espiga infectada com o fungo em sua pequena plantação.

Considerou um prêmio e, na primeira oportunidade, incluiu o ingrediente no menu de almoço. Fez queijo provolone derretido com ragu de huitlacoche e milho verde, a partir de grãos refogados em cebola, alho, tomate, nata e manteiga.

"Dias depois, outro produtor, que viu meus posts no Instagram, apareceu no restaurante e me passou mais 30 espigas. Ele simplesmente descartava o milho infectado porque não conhecia seu valor", conta.

Com esse novo lote, Tarso preparou uma maionese picante, que usou para pincelar espigas de milho precoces, cozidas na brasa. "Provei in natura, o sabor é intenso e bem peculiar, lembra muito o de cogumelos silvestres."

Quando estão jovens, os grãos de huitlacoche têm textura mais firme. No entanto, vão murchando à medida em que envelhecem —o que acontece muito rápido, em questão de dias. Ao final do ciclo, se desfazem na forma de um pó negro. Por essa razão, no mundo da agricultura, o fungo é conhecido como "carvão do milho", uma praga a ser combatida e até incinerada, segundo pregam os manuais.

Bem diferente do que acontece no México. No país onde existem 59 raças de milho catalogadas, o huitlacoche é um alimento de uso cotidiano, popular e apreciado. Diretor geral da Fundación Tortilla, entidade sem fins lucrativos que tem como objetivo fomentar a cultura do milho no país, Rafael Mier conta que o fungo não é exclusividade da cozinha tradicional.

"Ele aparece em quesadillas, nos moles e no recheio dos tamales, nas também nas lasanhas, nos pratos de massa, nas sopas e nos molhos para carnes", enumera.

Responsável pelo Projeto Crioulo, que cultiva variedades crioulas de milho na Fazenda Vista Alegre, em Capim Branco (MG), o engenheiro agrônomo Lucas de Sousa dividiu opiniões quando postou as fotos e vídeos das primeiras espigas com huitlacoche que encontrou.

Enquanto colegas de profissão enxergaram o fungo como doença e o alertaram do perigo, chefs de cozinha comemoraram a descoberta da iguaria.

Um desses chefs foi o mexicano Eduardo Nava Ortiz, do restaurante Metzi, em Pinheiros. Com as amostras enviadas por Sousa, o chef preparou uma espécie de molho denso —refogou o huitlacoche com milho, cebola, alho, manteiga, creme azedo e queijo meia-cura e serviu a preparação com tortilhas.

Tortilha de huitlacoche do restaurante Metzi - Gabriel Cabral/Folhapress

Segundo ele, cerca de 70% dos clientes gostaram, gente que já conhecia o produto ou "tem a mente mais aberta". Os demais torceram o nariz.

Doutor em biologia de fungos e proprietário da Terroir Sul, de Santa Maria (RS), especializada em ingredientes regionais, Marcelo Sulzbacher aposta que o huitlacoche vai virar moda em pouco tempo. "Já tem muito chef me procurando, querendo comprar", entrega.

O status de raridade colabora para a alta demanda. Primeiro, porque o huitlacoche só se desenvolve em plantações de milho crioulo. "As variedades convencionais já passaram por melhoramento genético e são resistentes", explica Sulzbacher.

Para se propagar e desenvolver, o fungo requer uma conjunção de fatores climáticos. Os esporos, levados pelo vento, entram na espiga durante o processo de crescimento, usando como porta de entrada os primeiros fios que surgem na palha, conhecidos como cabelo do milho.

Também podem ser espalhados pela água da chuva e entrar na planta pelas raízes. Seja qual for o caminho, precisam de calor e umidade alta. "No vale central gaúcho, onde moro, colhemos no verão, entre novembro e fevereiro. Este ano, praticamente não deu por causa da seca", conta Sulzbacher.

A capacidade de disseminação espontânea não é tão alta —em uma plantação de 10 hectares, Lucas de Sousa não achou mais do que 20 espigas. No México, onde a demanda é constante, existem produtores especialmente dedicados ao cultivo do fungo.

É possível provocar a inoculação borrifando a lavoura com uma solução de água com o pó dos grãos, ou injetando o líquido diretamente nas espigas, uma a uma, com auxílio de uma seringa. O esforço, segundo Mier, compensa financeiramente.

"Enquanto o quilo de huitlacoche é vendido por 5 a 10 dólares, o quilo de milho comum rende centavos para o produtor", compara. Mas o sabor do fungo induzido, ele emenda, não é tão bom. "O que surge de forma espontânea é mais gostoso e atinge tamanho maior."

Para quem já está pensando em provocar a proliferação de huitlacoche, Sulzbacher adverte: a prática exige controle e conhecimento técnico. "É fundamental uma supervisão rigorosa para que não vire realmente uma praga", alerta.

Melhor, na opinião dele, é divulgar a importância do fungo, para evitar que continue a ser temido e descartado, e fazer com que chegue às mãos do maior número possível de chefs de cozinha. "Ainda nem temos mercado para estimar quanto custaria por aqui. Por isso, deve ser tratado como ouro."

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