'Nunca fui um docinho de coco', diz Carla Pernambuco aos 30 anos de carreira

Chef conta como driblou a pandemia, fala dos dois infartos e imagina o futuro do setor e da crítica

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Carla Pernambuco,62, em seu estúdio em frente ao restaurante Carlota, em Higienópolis Eduardo Knapp/ Folhapress

São Paulo

Era o ano de 1992. Matriculada na Peter Kump’s Cooking School, atual Institute of Culinary Education, em Nova York, a gaúcha Carla Beatriz Danesi Pernambuco foi contratada para servir brunches brasileiros no restaurante Boom (extinto em 2012), no Soho. Até então, era uma jornalista que gostava de cozinhar para os amigos —e sequer imaginava que se tornaria uma das chefs de cozinha mais famosas do Brasil.

Nas três décadas seguintes, Carla não só inaugurou o restaurante Carlota, que completa 27 anos em setembro sem acusar a idade, como pôs seu nome em 10 livros e seis programas de TV. E tudo isso muito antes que a popularidade dos chefs passasse a ser medida em likes e números de seguidores nas redes sociais.

Durante a pandemia, entrou de cabeça no universo do delivery, até então um ilustre desconhecido. Desenvolveu uma linha de pratos congelados, o Carlota Polar, e quatro produtos com sua marca, criados em parceria com produtores artesanais de café, mel, azeite e doce de leite.

Aos 62 anos, casada há 33 com o fotógrafo Fernando Pernambuco, e mãe de três filhos, Carla tem uma agenda de tirar o fôlego de qualquer adolescente —nem mesmo o segundo infarto, que resultou na colocação de um stent, foi capaz de diminuir o ritmo dessa escorpiana que se classifica uma "maníaco-eufórica".

Carla acaba de criar um novo menu de comidinhas para o Carlota, em Higienópolis, e que vai vigorar no intervalo entre almoço e jantar. O cardápio foi batizado de Estação Carlota, homenagem irônica à barulhenta obra do metrô colada ao restaurante.

Ao mesmo tempo, supervisionou a criação do cardápio do restaurante 1835, que faz parte do novo hotel de luxo Kempinski Laje de Pedra, na Serra Gaúcha —a operação hoteleira só deve iniciar a operação em 2024, mas o restaurante foi inaugurado em novembro de 2021.

Carla Pernambuco, que completa 30 anos de carreira - Eduardo Knapp/Folhapress

A chef também pôs um site novo no ar e criou uma newsletter quinzenal, com artigos autorais. Está escrevendo seu 11º livro, "Meu Coração na Mesa", com receitas saudáveis focadas na redução do colesterol.

Começou a desenvolver uma linha de louças para a loja de decoração Westwing, em parceria com a filha, além de um curry à base de ingredientes amazônicos, para a marca Manioca, e um chutney para a marca Soul Brasil. Também virou celebridade no Instagram, com 151 mil seguidores.

Em uma tarde de tempestade em São Paulo no começo de fevereiro, Carla recebeu a Folha na cozinha do Estúdio CP, espaço que funciona como escola e laboratório de criação, na mesma rua do restaurante.

Ela relembrou sua trajetória e contou, na qualidade de testemunha ocular, como o mundo da gastronomia e os restaurantes em São Paulo mudaram nos últimos 30 anos.

Você é gaúcha, de família italiana, mas as influências asiáticas sempre foram sua marca registrada. Como se deu essa mistura?

Nasci em família de italianos e portugueses de um lado, com uma avó uruguaia do outro. Todos cozinhavam muito. Cresci comendo linguiça caseira, ravióli de miolos, dobradinha com feijão branco, bife de ovelha, todas essas coisas fortes. Era um ambiente propício para uma pessoa virar cozinheira. Recentemente, revisitei essa cozinha gaúcha para supervisionar a criação dos pratos do 1835, em Canela (RS): fizemos cheesecake com calda de butiá, sorvete de sagu, torta de queijo com keschmier, o cottage que se come no café colonial. Foi emocionante. As influências asiáticas vieram bem depois, do tempo em que vivi em Nova York, entre 1991 e 1994. Morei em três endereços, todos perto de Chinatown, e comecei a frequentar os mercados asiáticos. Provava de tudo e abri minha cabeça.

Que prato te emociona?

Adoro uma massa só na manteiga, com um pouquinho de noz-moscada. É minha comida de alma. Também sou louca por canja, que faço de um jeito diferente, com macarrão cabelinho de anjo no lugar do arroz.

Como era o cenário gastronômico paulistano quando inaugurou o Carlota?

Imagine que não havia internet. O que se via pela cidade eram cozinhas de maîtres, não de chefs, com poucas mulheres à frente. O Spot e o Gero eram a sensação. Idealizei o Carlota como um lugar descontraído, com poucos lugares e um balcão enorme, onde as pessoas comprassem comida para levar. O nome original era Carlota Café. Contratei três garçonetes charmosas, que mal sabiam segurar uma bandeja. As sobremesas eram da Isabela Suplicy. Aí fomos empurrados para o universo da gastronomia. Eu havia trabalhado com a Joyce Pascowitch, na Folha de S.Paulo, e depois como relações públicas da agência de publicidade DM9. Meu marido era fotógrafo de moda. Ou seja, três tribos de amigos formadores de opinião, que ajudaram o Carlota a acontecer. Quando o Josimar Melo escreveu sobre a gente na Folha, foi uma loucura. Logo vieram prêmios, que fizeram a casa encher, mudaram o perfil do nosso público e nos obrigaram a crescer.

O que você se lembra daquele primeiro cardápio?

Tinha cavaquinha com purê de mandioquinha e ova de salmão, que virou um sucesso pelo preço baixo. A gente não tinha noção, precisei reajustar quando entendi o tanto de impostos que teria de pagar. Os rolls estão desde o início e continuam no menu, assim como o suflê de goiabada. O camarão crocante saiu uma época, briguei com ele por ser uma fritura muito gordurosa, mas recebia bilhetes pedindo que ele voltasse.

O que fazia um restaurante 'bombar' naquela época?

Comida boa com preço justo, em ambiente descontraído. Até hoje a receita funciona. Quando você formaliza demais o serviço, espanta uma parcela grande do público. Sempre nos classificaram como "o barato dos caros", um ótimo lugar para ficar, na minha opinião. Consigo usar bons produtos, sem abusar dos preços.

Estar na TV ajudou?

Sem dúvida. Não é à toa que todo chef quer ir para a TV. Os programas despertam nas pessoas a vontade de cozinhar e de ir a restaurantes, elas passam a fazer parte do mundo da comida. Mas só gosto de fazer tutoriais de receitas, não sou fã dos reality shows. Acho a fórmula esgotada. Não gosto da maneira como são conduzidos, colocar as pessoas publicamente naquelas situações. Aquele clima de tensão só atrapalha. Ele já existe naturalmente na cozinha, ninguém precisa de mais pressão. Depois dos episódios cardíacos, eu até mudei com minha equipe. Era dura, agora sou mais relaxada. Tudo o que não quero na vida é tensão.

Você já teve outros restaurantes, como a filial carioca do Carlota e a sociedade no Las Chicas. Por que desistiu deles?

Deixei o Rio de Janeiro por problemas com a proprietária do imóvel, mas foi muito importante ter passado aqueles 11 anos no Leblon. Ganhei prêmios importantes e dei visibilidade internacional para o restaurante. A saída do Las Chicas foi uma opção: eu quis encolher de tamanho e cuidar só do Carlota. Ainda bem. Ter tido juízo e me contentado em ser pequena só ajudou a enfrentar a pandemia.

Como tem sido sua relação com os críticos de gastronomia?

A crítica é necessária e mantenho ótimas relações, viro até fonte deles sugerindo pautas. O texto do Josimar Melo, por exemplo, foi fundamental para o Carlota. Ele é ácido, mas eu nunca fui um docinho de coco, então tudo bem.

E com os influenciadores digitais, a relação é a mesma?

São bem-vindos, porque representam uma democratização na geração de conteúdo e no compartilhamento de informações. Espero que honrem suas opiniões e tenham critérios de avaliação, independente de retribuições financeiras.

O público mudou nessas três décadas?

Muito. Quando abri o Carlota, via duplas de homens de negócios preferindo pratos gordurosos. Hoje, há uma preocupação crescente com a saúde, todos pedindo acompanhamentos mais leves. Já vendo mais sucos de frutas do que refrigerantes. Os peixes se tornaram campeões de vendas e os doces têm cada vez menos açúcar. Mas fazer sobremesa diet não funciona, ninguém pede.

Por que você trabalha em tantas frentes ao mesmo tempo? É sua personalidade, ou não dá para ganhar dinheiro só com o restaurante?

Sempre fui multitarefas, me empolgo com as coisas. E, olha que estou de repouso por ordens médicas! Só consegui conciliar a carreira com meus três filhos em função da rede de apoio que sempre tive ao meu redor, especialmente minha mãe, que faleceu há dois meses. Hoje, minhas filhas Floriana e Julia são meu apoio.

Qual sua opinião a respeito da relação entre chefs famosos e publicidade?

Não sou contra e já fiz muito. Fui embaixadora da Tramontina, fiz campanhas para o Pão de Açúcar, fornos Pratika e Varig, criei programas de TV patrocinados pela JBS, desenvolvi receita para a Pomarola. Mas não dá para atrelar seu nome a qualquer marca. Já fiz uma campanha, anos atrás, para uma marca de margarina. Aceitei com o coração na mão, porque margarina nunca é um produto bom. Hoje não faria, mas na época estava sem dinheiro, com os boletos chegando. Por isso não julgo, entendo o lado humano de quem aceita.

Seu suflê de goiabada foi bastante copiado e sempre aparece nas reportagens sobre autoria de receitas. Ainda há espaço para esse tipo de discussão?

Para mim, nunca foi assunto. A melhor coisa para registrar a autoria de uma receita é publicá-la. E fazer sempre melhor do que os outros. Se as pessoas gostam, não há como impedir que copiem.

Qual foi sua boia para não naufragar na pandemia?

A boia mental foi a criação dos produtos, o que me ocupou bastante. A financeira foi o delivery, que lancei no dia 18 de março. O designer Daniel Kondo foi impecável, criou as embalagens sem cobrar. Mas demiti 15 pessoas e peguei dinheiro emprestado para pagar as rescisões, pois não tenho sócio-investidor. Tinha 400 garrafas de vinho no estoque, precisei negociar com fornecedores. Alguns foram parceiros e parcelaram, outros não. Pelo menos sou proprietária de metade do imóvel. Se estivesse em shopping center ou tivesse várias unidades, teria quebrado. Os governos atuais não ajudaram em nada. O federal... Sem comentários, né? Mas também faltou o governo estadual olhar para o pequeno empresário. Somos pulguinhas tratadas como grandes empresas. A pandemia foi uma palhaçada. Claro que era preciso implementar restrições, mas fecharam os restaurantes e não controlaram o transporte público. Pagamos uma conta gigantesca sozinhos e o resultado está aí, um monte de gente quebrada. Agora vêm as eleições, todo mundo vai receber o que merece. Ninguém vai ser reeleito.

Teve medo de morrer quando sofreu os infartos?

De morrer não, mas de ter um AVC e ficar com sequelas graves, como aconteceu com a minha mãe. Mudei minha rotina. Hoje faço ioga, pilates e caminhadas, repensei a alimentação. O próximo livro, que deve virar uma plataforma, será sobre isso: como comer comida gostosa à base de ingredientes que fazem bem para a saúde. Não sou maluca de dizer que ninguém pode comer fritura, mas há formas equilibradas de fazer isso. Comendo menos carne, por exemplo. Acabo de criar uma polenta brustolada de milho crioulo, que vai à mesa com molho cremoso de cogumelos e um cogumelo eringui grelhado, como um bife.

O que falta realizar?

Algum tempo atrás, eu e a Néli Pereira [mixologista e pesquisadora] escrevemos um projeto inspirado no trabalho do crítico Jonathan Gold, de Los Angeles, que revelava talentos da cozinha na periferia da cidade. Ainda não aconteceu, mas é algo que quero fazer. E ter casa de praia para ir de vez em quando.

Como serão os restaurantes de São Paulo daqui a 30 anos?

Vejo todo mundo comendo melhor. A comida vai ser cada vez mais saudável. Só nos acostumamos a comer tanta carne porque era um produto barato, mas isso mudou. Todo mundo vai ter que comer mais vegetais e consumir peixes com parcimônia, pois o planeta não aguenta mais. Lugares sofisticados não vão deixar de existir, mas a maioria dos estabelecimentos vai ser mais simples. Esse excesso de serviço no salão, típico do Brasil, vai acabar. Vai ser possível trabalhar com equipes enxutas e mais bem pagas. Por isso fico pensando: será que fico menor ainda do que já sou?

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