Hoje, o inimigo é claro: escreveu livros perigosos como "Crime e Castigo", tem aspecto soturno e costuma ser visto numa montanha russa, com as longas barbas voando ao vento, um prato de estrogonofe no colo e a Legião Urbana no fone.
Na guerra de memes, jogamos roleta russa com a cultura. Ninguém sai vivo. A vodca, espírito ancestral, tornou-se bebida non grata. A não ser que seja batizada —ou rebatizada.
A invasão da Ucrânia deu munição pesada para a era dos cancelamentos. Aderindo às sanções de todo o tipo, bares nos EUA jogam fora as garrafas da bebida dos czares e mujiques e, numa indignada faxina etílica, alteram nomes e receitas de coquetéis.
Sobrou até para o singelo moscow mule. Manter o nome da base de Putin no coquetel equivaleria, afinal, a ter uma AK-12 nas mãos. A solução foi mudar para kiev mule, celebrando a resistência na capital ucraniana.
Mesmo que se perca a saborosa aliteração dos "mm", o marketing ideológico tem sua graça, até porque é muito ruim beber com a sensação de estar do lado errado da história —a ressaca pode ser siberiana.
Não é a primeira vez que a vodca, cuja paternidade, diga-se, também é disputada pela Polônia, é cancelada. Em 1983, era o destilado mais consumido nos EUA, deixando o gim e o uísque no chinelo.
Beber Stolichnaya com gelo era algo refinado, uma leve transgressão na Guerra Fria. Mas então um míssil soviético derrubou um avião civil, matando mais de 200 pessoas. A venda de vodca russa caiu junto com o boeing que, num infeliz erro de navegação, tinha invadido o espaço aéreo da URSS.
Foi a deixa para que a Absolut, da neutra Suécia, assumisse o posto de vodca chique e —mais importante— não-comunista. Andy Warhol e Keith Harring foram convocados a desenhar rótulos especiais para a marca do país. Ironicamente, a Suécia é um dos maiores fabricantes de armas do planeta.
Por coincidência, a vodca tornou-se conhecida mundialmente na Ucrânia. Foi em 1945, na Conferência de Ialta, cidade da Criméia, controlada há menos de uma década pelos russos.
Na ocasião, Stalin torceu o bigode para o dry martini oferecido por Roosevelt e emborcou com orgulho a poção de sua pátria, consumida como elixir da coragem pelos soldados que atravessaram o arrasado solo ucraniano para tomar Berlim. Juntamente com Churchill, os três chefes de Estado discutiam os termos do final da Segunda Guerra. A vodca ganhava as cores de uma pomba com ramo no bico.
Não por acaso, o moscow mule nasceu um ano depois, da cabeça de dois empresários que nada tinham de comunistas, muito menos de russos. Numa tempestade cerebral que unia o útil ao agradável, decidiram combinar a Smirnoff fabricada e distribuída por um deles, o americano John G. Martin, e a ginger beer importada e encalhada no bar do outro, o inglês Jack Morgan.
Na linguagem geopolítica, a história fica ainda mais divertida quando se sabe que o bar em questão, o Cock'n Bull, fica no centro do imperialismo cultural do planeta: Hollywood. Ou seja, é pouco provável que Putin tenha tomado um moscow mule em toda sua vida de lutador de judô, agente da KGB e autocrata. Não deve nem saber o que é. A etiqueta do macho tóxico não permitiria tal deslize.
Quanto a Biden e seus antecessores, não podemos botar a mão no fogo, já que o moscow mule é filho dileto da iniciativa capitalista. Nos anos 1960, a Smirnoff gastou tubos de dólares para realizar campanhas com Woody Allen e outros astros do cinema empunhando a famosa canequinha de cobre.
A canequinha, por sinal, era produzida pela empresa da namorada de Morgan. Tudo em casa. E bem longe de Kiev, Odessa e Moscou, onde a gigante coqueteleira da história prepara um coquetel de desgraças.
Na Ucrânia, além do (russo) Molotov, o que se produz são dissidências da vodca, lá chamada gorilka. Ervas, frutas, grãos e outros elementos são adicionados ao líquido transparente, talvez para diluir o caráter russo, em combinações que parecem sopas.
Resta sugerir o banimento da caipiroska, um atentado à velha e boa caipirinha.
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