Mercados de BH se alternam dia e noite com bares que reúnem dos 'modernos' aos famintos

Novo e Central oferecem pão de queijo, drinques com cachaça e até empadas de jiló

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Belo Horizonte

Mercados são programas obrigatórios do turista interessado em investigar um pouco mais a fundo a cultura de um destino. Visitá-los é a forma mais fácil de absorver um pouco da alma de uma cidade, em questão de minutos ou poucas horas, usando apenas as pernas e a percepção sensorial.

Belo Horizonte vai além: lá, os mercados são a atração principal. Nenhuma visita à cidade é digna de nota sem a passagem pelo Mercado Central, seus queijos e seus quitutes. O vizinho Mercado Novo se tornou recentemente o programa noturno mais interessante da capital mineira, com bares e restaurantes e gente, digamos, moderna.

Área interna da Cozinha Tupis, no Mercado Novo, em Belo Horizonte - Bernardo Silva/Divulgação

Os dois mercados têm histórias entrelaçadas desde a gênese. Mais do que concorrentes, são complementares. Quando um adormece, o outro acorda. Comecemos pela manhã, portanto, no Mercado Central.

Como paulistano praticante, sou incapaz de avaliar o mercadão mineiro sem compará-lo ao Mercado Municipal da várzea do Tamanduateí.

A começar pelo prédio: o mercado belo-horizontino não é imponente como o primo de São Paulo. É condensado em espaços exíguos, algo claustrofóbicos. As lojas se distribuem num quadrado com corredores concêntricos, o que leva à desorientação total do visitante.

Mas ninguém se aproveita da confusão para aplicar no turista o golpe da fruta. Percebem-se, aqui e ali, sinais inequívocos de arapuca turística, sem, entretanto, atingir cúmulos como o sanduíche de mortadela triplex. Um charme engana-trouxa faz parte de qualquer atração do tipo.

A armadilha é fácil de se detectar: está aonde as multidões vão. No caso do Mercado Central, o bar que serve iscas de fígado do jiló, lotado de gente bebendo cerveja às 11h da manhã de uma quinta-feira.

Tampouco é difícil identificar a tradição que persiste. Ela está na natureza das lojas —tabacarias, quiosque de limonada, artigos para montaria, velas e incensos, pimentas e temperos em geral— e também em seus nomes.

Quinze dos comércios do Mercado Central se arrogam algum tipo de nobreza monárquica: Rei dos Berrantes, Rei do Torresmo, Rainha da Linguiça, Império das Batatas. Outros, mui mineiramente, apostam em nomes que remetem à humildade matuta. A Comercial Sabiá, por exemplo.

Foi lá que, por indicação de um amigo, parei para lanchar um pão de queijo recheado com pernil e, sim!, mais queijo pois Minas Gerais (R$ 16), tudo aquecido na chapa até o queijo extra derreter.

Havia um problema. Na estufa, um aviso ostensivo dava a real: "Não aceitamos cheque, cartão de crédito, cartão de débito". Aceitam pix? Não.

Dirigi-me à mulher do caixa. Ela me apontou o caixa eletrônico atrás de mim, quase a roçar na minha bunda. "Mas, senhora, eu saí sem carteira. Trouxe apenas o celular." A caixa deu de ombros. Eu não desisti, aquilo se havia tornado um ponto de honra.

Abordei uma tia que tirava dinheiro e a convenci a sacar R$ 20 que seriam repostos por um pix. Desconfiadíssima, ela me entregou a cédula assim que eu lhe mostrei o comprovante de depósito. Ponto para São Paulo. Ponto para Minas Gerais.

O desempate viria quando eu finalmente pus os dentes no tal pão de queijo. Mais um ponto para Minas Gerais! Resultado final: 2x1.

Um dos bares no Mercado Novo, em Belo Horizonte - Bernardo Silva/Divulgação

A tradição se nota na obsessão pelo queijo, pela cachaça, pela carne de porco, no suco bem doce da Tradicional Limonada (R$ 2,50, 200 ml), nas espetaculares e vulcanicamente quentes empadas (R$ 5,50) do Ponto da Empada —a mais famosa é a de jiló, me indicaram a de queijo e eu não me arrependi ao pedir a de frango com azeitona, úmida e saborosa com toda coxinha deveria ser.

O nariz fareja tradição ainda quando você dobra uma esquina e se depara com um corredor cheio de animais vivos, alguns para matar e comer, outros para deixar viver: são gaiolas com galinhas, patos, gansos, pavões, cabritos e até cachorros. A permanência dessas lojas é um embate, que se arrasta por décadas, entre o mercado e as autoridades sanitárias.

Foi tal embate, por sinal, que deu origem ao Mercado Novo, a meio quilômetro dali.

No início da década de 1960, o Mercado Central era uma feira livre fixa, de alvenaria, porém sem teto e um tanto insalubre. "O prefeito Jorge Carone [1963-65] queria despejar os comerciantes por questões sanitárias", diz o historiador Alessandro Borsagli, da PUC-MG.

O Mercado Novo foi construído como complemento, quiçá substituto, do outro mercado, num arroubo modernizador da prefeitura. "Acabaram com o serviço de bondes e ergueram o edifício onde ficava a oficina desses bondes", conta Borsagli.

O plano deu ruim, como sói acontecer. Os lojistas do Mercado Central se uniram, compraram o terreno e se apressaram em sanar as pendengas estruturais e sanitárias. O mercado velho torou, e o novo flopou.

O Mercado Novo, um prédio modernista de quatro andares, esteve subocupado e latente até o final da década passada. O subsolo abrigava —ainda abriga— uma feira de hortifrutis na madrugada.

Os outros pisos acolhiam, esparsamente, lojas e oficinas antiquadas –em especial, de tipografia, o que atraía artistas e designers em busca de estética vintage.

O designer Rafael Quick, que abastecia seu bar nesse hortifruti, deu início à colonização do Mercado Novo em 2018. Ele e os sócios abriram num canto do segundo andar uma cervejaria e um restaurante, a Cozinha Tupis, e arrastaram consigo toda a vida noturna de Belo Horizonte.

Quick paramentou seus comércios com os serviços já existentes no Mercado Novo –e doutrinou os lojistas recém-chegados a fazer o mesmo. "Foi um trabalho de convencimento e conscientização", diz. "Passei oito meses dando palestras aos sábados pela manhã."

Isso resultou numa relativa uniformidade estética dos pontos do segundo andar do mercado —o térreo segue com a feira, e o primeiro nível, com as velhas oficinas. Também foi respeitado, temporariamente, um acordo determinando que as lojas não competiram pelo mesmo cliente.

Assim, quem vendia comida não vendia bebida. Você pega uma comida na Tupis (por exemplo, um acepipe de azeitona, batatinha e ovo de codorna, R$ 42) e vai até a Lamparina beber alguns dos drinques mais gostosos já feitos com cachaça (bombeirinho, feito com infusão de hibisco e outras coisas, R$ 18).

O segundo andar também tem restaurantes temáticos de fogão a lenha, de salgados na estufa (uma obsessão mineira), de "pão moiado" (sanduíche com muito molho), de frutos do mar à moda capixaba e até uma "pãodequeijaria".

No terceiro piso, de ocupação mais recente, bares de coquetelaria e american barbecue, o clima é definitivamente mais burguês. No fim, todos os públicos se misturam.

Hordas de gente jovem e com grana, chamem-nas de hipsters ou alternativas, enchem o mercado todas as noites. Quando dá meia-noite e os bares fecham, existe a possibilidade de você conhecer o dono da bodega e continuar bebendo madrugada adentro —essa era a minha situação.

Aí os corredores do mercado, escuros e ermos, são tomados por gatos esqueléticos que surgem sabe-se lá de onde. A vigília, então, pode prosseguir na feira do subsolo até a abertura do Mercado Central. Esse é o conceito mineiro de mercado 24 horas.

SERVIÇO

Mercado Central de Belo Horizonte. Av. Augusto de Lima, 744, centro

Mercado Novo. Rua Rio Grande do Sul, 499, centro.

O jornalista viajou a convite de Vale

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