Memória afetiva pode explicar por que gosto do chocolate e do salgadinho era melhor na infância

Produtos reformulados, que mudam de sabor e de textura, irritam consumidores e geram reclamações

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São Paulo

Leite condensado que é mistura láctea, hambúrguer de picanha sem picanha, biscoito de mel que não leva mel —as modificações que a indústria de alimentos promove sem que o consumidor seja claramente informado nunca estiveram tão em evidência.

Paralelo a isso, os consumidores também andam danados da vida porque não conseguem mais reconhecer o sabor de alimentos de que mais gostam. Entre janeiro de 2020 e maio de 2022, o site Reclame Aqui registrou 968 queixas relativas a produtos alimentícios com os temas "mudança no sabor", "alteração na fórmula" e "alteração no gosto/sabor". Bebidas, bomboniere e laticínios lideram o ranking, com 312, 259 e 224 reclamações respectivamente.

Quadrado dividido em 4, com desenhos retrô de alguns produtos da década de 80: Paçoca Amor, sorvete Kibon (o antigo vinha embalado em tijolo de papelão ou lata redonda), chocolates Kri (nome antigo do Crunch) e Suflair, e Fandangos
Ilustração baseada nas embalagens de produtos que sobrevivem até hoje, porém com sabor diferente de acordo com consumidores - Catarina Pignato

Os descontentes também recorreram ao Procon-SP. Só em 2022, foram registradas 250 queixas referentes a alterações de odor, sabor, aspecto e composição química de alimentos industrializados.

Até o Twitter virou palco de discussão —na rede social, proliferam debates acalorados sobre a mudança no sabor da bolacha recheada Passatempo, fabricada pela Nestlé.

Atendente de uma farmácia em Santo André, na Grande São Paulo, Caio Augusto de Souza, 38, não se limitou a registrar a queixa no Reclame Aqui —fez contato com a PepsiCo, fabricante dos produtos Elma Chips, para saber por que a fórmula dos Fandangos mudou. Viciado confesso no salgadinho à base de farinha de milho, ele diz que sente falta do sabor de antigamente.

"Como Fandangos desde que me entendo por gente. Juntava moedas para comprar na escola e passei a gostar mais ainda depois de adulto. De uma hora para outra, senti um gosto intragável", relata.

A explicação dada pela Elma Chips, diz Caio, não convenceu. "Me disseram que a fórmula mudou em função de pesquisa com consumidores. Fazer o quê? Troquei os Fandangos pelo produto de um concorrente. É um fabricante pequeno, torço para que não mude a fórmula também."

Em nota oficial, a empresa diz que a marca Fandangos "está em constante evolução" e que, em fevereiro passado, "o sabor Fandangos Presunto passou por uma progressão para deixá-lo ainda mais saboroso".

"As inovações sempre percorrem estudos com o público e validações das áreas de qualidade e pesquisa e desenvolvimento, e somente são implementadas quando são bem avaliadas", completou o texto.

Indignação semelhante à de Caio Augusto sentiu a estudante Mariana Antunes, 32, quando mordeu recentemente um chocolate Suflair, da Nestlé. Durante uma crise de TPM, decidida a interromper a dieta e devorar uma barra inteirinha, ela procurou o sabor conhecido e não encontrou.

"Tive uma infância de escassez. Quando comia Suflair, era uma delícia. Ficou na memória como algo de qualidade, dado pela amiga que tinha mais dinheiro ou pelo pai, que conseguia às vezes nos fazer um agrado", ela conta.

Hoje, emenda Mariana, a sensação passa longe disso. "É puro gosto de açúcar com gordura hidrogenada. Fiquei revoltada, não compro mais. Reclamei, mas a Nestlé mandou uma resposta protocolar, alegando que devia estar estragado, embora estivesse na validade."

À reportagem, a empresa explica que tem "simplificado as listas de ingredientes, removendo corantes artificiais, buscando a melhoria nutricional dos produtos", e diz que "leva em consideração" a relação afetiva do consumidor com suas marcas.

O vínculo entre Caio Augusto e os salgadinhos e entre Mariana e o chocolate está profundamente ligado a um tema que virou moda no mundo da gastronomia: memória afetiva.

Só que ele geralmente aparece atrelado à comida familiar, às receitas da avó e aos pratos preparados pela mãe, e raramente aos alimentos industrializados. No entanto, a comida que sai da fábrica também tem poder de imprimir memórias boas (ou ruins) no cérebro —e de trazê-las de volta.

Segundo a neurologista Christiane Cobas, do Hospital Sírio-Libanês, todos os odores que sentimos ao longo da vida ficam armazenados na memória, em uma área do cérebro ligada ao sistema límbico, onde também estão arquivadas emoções positivas e negativas.

"Não sabemos por quê, mas esses registros ficam muito próximos. Por isso, quando sentimos o perfume da comida da avó, vem junto o calorzinho daquela lembrança", explica a especialista.

Muitos fatores contribuem para que o gosto de uma comida fique gravado na memória associado a uma emoção. Segundo Marle Alvarenga, doutora em nutrição pela Universidade de São Paulo e coordenadora do Instituto Nutrição Comportamental, a companhia, o estado de humor e o ambiente entram na receita, assim como o contexto em determinada fase da vida.

A memória gostosa do refrigerante preferido na adolescência, por exemplo, pode ser eternizada por causa do componente de rebeldia —e trazer de volta a sensação de transgressão.

"Mesmo depois que aquela história toda já se perdeu, o que ficou registrado no cérebro ativa o mecanismo de recompensa. Se me trouxe prazer um dia, eu repito o gesto em busca de prazer outra vez", diz Marle.

A professora universitária Marilia Andrade, 49, não esquece como era bom, lá pelos dez anos de idade, ir a pé até o mercadinho para comprar chocolate Kri, seu preferido.

"Eu gostava do chocolate e mais ainda do ritual de enfrentar o medo de andar sozinha pela avenida. O Kri virou Crunch, mas o gosto mudou e a lembrança não vem mais."

Para acionar tais memórias, nem é preciso comer de fato. De acordo com a nutricionista, a dopamina, neurotransmissor ligado à sensação de prazer, começa a ser liberada antes mesmo que a gente dê a primeira mordida. "A expectativa em relação à comida acaba sendo mais importante do que a comida em si."

O gatilho para buscar uma memória gostosa pode ser até mesmo uma embalagem, como relata a professora de ginástica Marta Eloisa de Campos, 51. Quando criança, ela aguardava o dia de receber a mesada e ir a pé até a quitanda, na companhia do irmão, para gastar as moedinhas em paçocas Amor.

"Tínhamos um ritual. Como a paçoca vinha toda esfarelada, o jeito era enrolar o papel em funil e jogar os farelos direto na boca. A textura era seca, grudava no céu da boca. A gente conversava e espirrava paçoca um no outro."

Marta segue comendo paçoca Amor, um momento de indulgência que reserva para as sobremesas. Mas lamenta que o doce não venha mais embrulhado no mesmo papel —e não esfarele mais.

"O material mudou. Aconteceu o mesmo com o bombom Alpino, que vinha em forminha dourada, como um selo que parecia um cinto. O ritual de abrir era delicioso. E o Sonho de Valsa? Era vendido em celofane. Depois de comer, a gente fazia uma dobradura e transformava o papel no vestido da moça que dançava a valsa."

Mudanças nas fórmulas e embalagens são corriqueiras na indústria alimentícia, e elas ocorrem por diversas razões. Podem ser motivadas por alterações na legislação, pelas demandas do consumidor, que procura produtos mais saudáveis, ou simplesmente para reduzir custos.

Para Francisco Santana, proprietário da Escola Sorvete, a busca por economia estaria por trás da transformação que o sorvete Kibon sofreu nas últimas décadas.

Muito antes de se tornar um especialista na arte de fazer sorvetes artesanais, ele se deliciava com o trio de sabores napolitano, embalado em tijolo de papel ou na lata redonda, ponto alto das festinhas de aniversário.

"A fórmula levava leite, creme de leite, fruta de verdade. Hoje, a pressão pelo custo impacta no sabor. Usam soro de leite, corantes e saborizantes baratos, além de óleo de palma, que mantém o sorvete cremoso mesmo congelado. A legislação brasileira é frouxa e permite muita coisa em favor da economia", acredita.

A Kibon respondeu à Folha que, em seus 80 anos de história, está "em constante inovação", e que ouve os consumidores para se renovar. "Buscamos oferecer um portfólio de produtos que une a memória afetiva que as pessoas já têm com nossos produtos com constantes atualizações, sempre com alta qualidade", afirmou a empresa em nota.

Anderson Freire, diretor de marketing, pesquisa e desenvolvimento da Arcor do Brasil, que produz a paçoca Amor, informou que a empresa realizou "melhoria na embalagem da paçoca Amor, considerando o acompanhamento do comportamento dos consumidores".

E admite que a inovação "fez com que ela ficasse menos ‘esfarelenta’, ou seja, mais cremosa". Mas garante que a receita é a mesma de sempre.

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