Descrição de chapéu
Ivan Ralston

Jogadores venceram universo que conspira contra e merecem comer o bife que quiserem

Por que só é notícia quando um negro come carne folheada a ouro?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ivan Ralston

Chef de cozinha, ex-Tujuína e criador do Tuju, restaurante premiado com duas estrelas Michelin que será reaberto em 2023

Pediram minha opinião sobre o caso do bife de ouro, assunto que foi abordado por vários jornalistas, sociólogos e historiadores —alguns que admiro, mas com quem nem sempre concordo. Acredito que a revolta é bastante seletiva e faz parte do racismo estrutural da nossa sociedade.

Comida com adereços de ouro é algo bem comum no cotidiano do rico brasileiro. Nunca me atraiu. Nunca usei e nunca entendi quem usa, mas também não julgo quem o faz.

Restaurante que recebeu a seleção brasileira, Nusr - ET, do chef Salt Bae - Gabriela Biló/Folhapress

Sempre acreditei que tudo que vai no prato deve ter uma funcionalidade. O estilo de cozinha que desenvolvi ao longo desses anos foi uma espécie de "Bauhaus culinário", onde tudo que está lá deve ter uma função.

Questionaram se eu iria a um restaurante gastar R$ 9.000 num bife com folha de ouro. Não, de maneira nenhuma, ainda mais porque não considero sério o trabalho do restaurante em questão. É o tipo de restaurante "ver e ser visto" —não é para mim.

Aos super-ricos que queiram gastar seu dinheiro melhor recomendo comer no Asador Etxebarri no País Basco. O bife não terá folha de ouro, mas será de uma vaca velha da raça rubia de uns seis a dez anos. Com certeza irão comer a melhor carne que existe, e que custará mais ou menos R$ 2.000 por pessoa, incluindo bebida alcoólica.

Caso queiram gastar menos, recomendo o Ultramarinos Marin, em Barcelona —a carne de lá tem qualidade equivalente, por um preço bem mais camarada. Uma refeição com tudo a que se tem direito sai por uns R$ 300, e a carne terá o mesmo padrão.

No Brasil, quem tem servido carnes bem acima da média é o restaurante Cepa. O chef de lá está sempre atrás do que existe de melhor no Brasil, superatento aos abates. Porém, sendo realista, ainda não temos por aqui uma carne no nível da espanhola. Temos bom wagyu, mas, para mim, esta é uma carne inferior às acima, principalmente por ser mais enjoativa.

Voltando à folha de ouro: ela está por aí, nas sobremesas, na carne, nas ovas, no dia a dia da elite que frequenta os restaurantes caros desse país. Curiosamente, nunca vi nenhum desses jornalistas, sociólogos e historiadores falarem mal disso.

Chef joga sal na comida - Gabriela Biló/Folhapress

Os que me conhecem sabem que detesto esse tipo de coisa e falo a esse respeito há muito tempo: o ouro, essa relíquia bárbara que tanto atrai os seres humanos há tempos, mas que, a meu ver, não tem nenhuma funcionalidade prática na vida humana. Nem na comida, nem nos anéis, nos colares, ou mesmo nas igrejas barrocas de Minas Gerais.

A Copa do Mundo tem escancarado o racismo estrutural da nossa sociedade. Não foram poucas as matérias desta cobertura que li e me incomodaram. Uma delas falava sobre o valor dos relógios dos jogadores, em tom bastante crítico.

Sugiro fortemente que esses jornalistas, sociólogos e historiadores estudem um pouco da cultura do hip hop americano. A exemplo do Brasil, os EUA também enfrentam o racismo, porém, num estágio de desenvolvimento e integração muito mais avançado do que o nosso.

Por lá existe um culto à conquista e à riqueza, com o objetivo de mostrar o que se conseguiu por meio do trabalho —e, sim, essa é uma provocação ao racista branco que se incomoda quando vê uma pessoa negra conquistar aquilo que, a seu ver, seria um privilégio só seu.

Quando um negro usa um relógio caro, dirige um carro de luxo ou come em um restaurante estrelado, cabe a todos nós enxergar tudo com a mesma normalidade com que se tratam os costumes da elite branca.

Li comentários como "Mas, olha o Mané de Senegal, ele doa todo o dinheiro dele e ajuda um monte de gente, ele é um exemplo". Sim, ele é um cara muito bacana, que admiro, mas isso não significa de forma alguma que todos os negros têm que ser como ele.

Está na hora de refletirmos sobre as razões que levam a esse tipo de pensamento. A maioria dos brancos muito ricos usa carros importados, relógios caros, mora em casas gigantescas, usa joias —por que é que quando o negro faz o mesmo ele vira notícia de jornal?

Deixem os rapazes da seleção comerem o que quiserem, usarem o carro que escolherem e o relógio que preferirem. Aceitem, acostumem-se. São vencedores em um universo que conspirava contra eles.

Escutem Racionais e se familiarizem com o "Negro Drama".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.