'Perdi tudo em um tiro', diz marido de vítima morta no Alemão
Nilson Borges, 40, perdeu a mulher Vanessa de Abecassis, 38, após ela ser atingida por uma bala perdida no peito, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio, na tarde de quinta- feira (19). Ele trabalha como auxiliar administrativo e Vanessa ficava em casa, cuidando do filho com necessidades especiais.
À Folha, esperando havia 8 horas para conseguir a liberação do corpo, Nilson relembrou o último beijo dado em Vanessa, a convivência desde quando eram crianças e criticou a polícia pacificadora local.
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"Eram 6h30 da manhã. Ela abriu a porta para eu ir trabalhar e uma mariposa entrou. Ficou no teto da sala. Na hora, ela falou: 'Minha mãe dizia que quando a mariposa fica parada na casa, é sinal de coisa ruim´. Disse que isso era besteira e lhe dei um beijo na boca. Foi o último. Naquela tarde soube, pelo telefone, que ela tinha sido baleada por um tiro de fuzil e estava morta. Quem ligou foi o nosso filho mais velho, Nilson. Ele tem 19 anos, praticamente o mesmo tempo em que estamos casados.
Eu e Vanessa nos conhecemos ainda crianças, no Alemão. A gente brincava nos becos, de pique-pega, com oito anos de idade. Ela tinha oito irmãos e eu, outros seis. Crescemos juntos. Ela sempre gostou de mim, mas eu era meio metido, não queria nada. Quando ela fez 18 anos, fomos a um baile funk. Ela ficou dançando, bonita, sempre foi vaidosa. Nos beijamos e um ano depois nasceu o Nilson.
A mãe dela nos deu um terreno no morro, onde começamos a construir nossa casa. Moramos na minha sogra por cinco anos, enquanto a obra avançava, quando nasceu o nosso segundo filho, o Denílson, que chamamos de Dedê. Ele nasceu perfeito, mas, com três meses, a Vanessa o segurava no colo quando ele começou a perder o ar, ficou azul. Corremos para o hospital, o médico disse que ele estava bem e o liberou. Naquele mesmo dia, ele ficou azul de novo, voltamos ao hospital, mas já era tarde. Por falta da oxigenação no cérebro, ele teve paralisia cerebral.
Ela ficava em casa e cuidava dele. Mesmo agora, ainda com 14 anos, ele é um bebê. Não fala e não anda, mas tem um sorrisão .Eu ajudo também. Nossa última conversa foi sobre isso.
Quando cheguei em casa, já de madrugada, fiz o macarrão para o almoço do Dedê. De manhã contei para ela, que sorriu e ficou de comprar verduras. Disse para ela pegar um dinheiro e se cuidar. Ela não queria fazer as unhas, não queria pintar o cabelo pois estávamos economizando para acabar a obra do segundo andar.
Nossa ideia era alugar a casa quando a obra acabasse e sair de lá. Estava muito perigoso. A UPP não funciona lá, entende? Tiroteio sempre.
Na minha rua, de um mês para cá, alguns viciados começaram a fumar maconha ali. A polícia achou que era uma boca, venda de drogas, e começou a haver troca de tiros por lá. Minha casa já tinha sido atingida por um tiro, no ano passado. Por isso, eu dizia para a Vanessa não ficar na porta nem na sala.
Mas ela era teimosa. Pediu a uma amiga comprar verduras para o almoço do Dedê e ficou conversando com outros vizinhos na porta de casa, quando foi atingida. O tiro veio de uma mata que fica abaixo da UPP.
No último domingo, ela me disse que caso morresse, era para eu vender a casa e casar com alguém que gostasse do Dedê.
Eu quero a minha 'filha'. Ela me chamava de 'filho' e eu a chamava de 'filha', pois cuidávamos um do outro, assim como dos nossos filhos.
Nossa diversão era gravar os filmes que passavam na televisão durante a semana e assistir no domingo. Ela era minha companheira, melhor amiga, meu primeiro amor. Perdi tudo isso em um tiro, um estalo. O tiro pegou o peito, o coração e o pulmão. Meu vizinho foi ferido na cabeça.
Nem perícia ou polícia estiveram na minha casa. A mariposa ainda está lá.
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