Ecléa Bosi (1936-2017)
Mortes: Estudou hábitos de leitura e memória em idosos
Marlene Bergamo/Folhapress | ||
Ecléa Bosi (1936-2017), durante o debate 'Envelhecer em São Paulo' promovido pela Folha, em 2003 |
A leitura não veio de maneira fácil para Ecléa Bosi: de família com poucos recursos, ela economizava no transporte para comprar livros. Ia a pé de casa, em Pinheiros, zona oeste de SP, até Campos Elíseos, bairro da região central em que estudava. Com 12 passagens economizadas podia comprar um livro.
Anos depois, a menina se tornaria uma importante psicóloga e pesquisadora, professora emérita da Universidade de São Paulo.
Psicóloga social, seus estudos sobre a memória deram origem aos livros "Memória e Sociedade" e "O Tempo Vivo da Memória" e lhe renderam prêmios internacionais. Na USP, onde fez toda a carreira acadêmica, ajudou a fundar o programa Universidade Aberta à Terceira Idade, voltado à inclusão de idosos.
PROLETÁRIAS
Intrigada pela admiração que uma tia "quase sem estudo" tinha por ler, estudou, no doutorado, o hábito da leitura em mulheres pobres, o que se transformou no livro "Cultura de massa e cultura popular - Leituras de operárias".
"Ela foi pioneira no estudo do proletariado feminino", diz o professor da USP Ivan Vilela, cujo doutorado foi orientado por Ecléa. "Foi também a primeira pessoa no Brasil a trabalhar a tradição oral como um conhecimento que deveria ser colocado dentro dos estudos acadêmicos."
Para Betty Mindlin, antropóloga e amiga da pesquisadora, Ecléa era "uma defensora dos direitos humanos e atuou contra as injustiças, dedicada a todos os marginalizados, inclusive aqueles que estão na velhice. Sua obra é grande e passa por variados domínios do conhecimento, sempre com uma ligação forte com o povo, o popular e os destituídos".
Outro a destacar o caráter humanístico da trajetória de Ecléa é Paulo de Salles Oliveira, professor do Departamento de Psicologia Social da USP. "Sua obra atravessou a psicologia social e foi um marco do humanismo, tornando-se um clássico das ciências sociais, formando pesquisadores do país inteiro. Ecléa tinha uma maneira peculiar de fazer ciências sociais com uma poética muito grande e, ao mesmo tempo, com embasamento teórico profundo e elaborado", diz.
"Sempre foi muito devotada aos oprimidos e às pessoas mais simples, que ela fazia questão de apoiar nas lutas públicas, mas que apoiava também de forma direta anonimamente. Era uma joia da universidade brasileira", afirma Oliveira.
MEMÓRIA
"Antigamente, se pensava a memória só como repositório dos fatos. Hoje, se pensa como a construção de uma identidade que te prepara para o futuro, importante para o conhecimento de si próprio. E a pesquisa de Ecléa foi fundamental para isso", diz o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro.
Marilene Proença Rebello de Souza, diretora do Instituto de Psicologia da USP, reitera a importância do trabalho da psicóloga em relação à memória. "Sempre trabalhou na perspectiva da psicologia social com temas ligados à questão da memória e da história", afirma.
"'Memórias de Velhos' é uma das obras mais importantes da psicologia e discute a visão da memória do ponto de vista fenomenológico. A Universidade Aberta da Terceira Idade na USP é uma materialização do que ela pensava sobre a história e a trajetória de cada ser humano."
Na Organização Internacional do Trabalho, da ONU, em Genebra, Ecléa denunciou os efeitos nocivos de produtos químicos em fábricas para a saúde das trabalhadoras.
"Nem tudo foram causas perdidas na minha inquieta juventude. Consegui conquistar meu professor de cursinho, meu companheiro até hoje", disse, quando se tornou professora emérita da USP. O professor a que se referia é Alfredo Bosi, renomado crítico e membro da Academia Brasileira de Letras.
Ecléa morreu no domingo (9), aos 80. Deixa o marido, dois filhos e netos. O enterro acontece nesta terça (11), às 9h, no Cemitério São Paulo.
A USP decretou luto oficial de três dias.
coluna.obituario@grupofolha.com.br
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