Encontrei cidade ainda tentando entender o que havia acontecido

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

FELIPE BÄCHTOLD
DE SÃO PAULO

No alto de um carro de som, um locutor lia nome a nome uma lista de jovens internados em um hospital. Em meio a milhares de pessoas que bloqueavam uma rua ali perto, era possível ouvir uma mãe, sentada na sombra de uma árvore, dizer baixinho enquanto chorava: "Não quero ficar sem a minha filha".

Dez horas depois do início do incêndio na boate Kiss, quando a reportagem da Folha chegou a Santa Maria, a cidade ainda tentava entender o que havia acontecido.

O incêndio estava controlado desde o início da manhã, e os mortos já tinham sido retirados do prédio da boate.

Porém, diante de uma inevitável desorganização devido às proporções da tragédia, o reconhecimento dos corpos ainda não estava autorizado.

Atrás de informações, muitos pais e amigos chegavam aos poucos à cidade, conhecida por receber estudantes universitários de todo o Rio Grande do Sul.

5 anos depois
O legado da boate Kiss

Familiares se agarravam até a boatos para evitar a pior das notícias. Rodavam por hospitais da cidade –completamente lotados para atender centenas de feridos– e falavam até em ir a municípios a mais de 100 km para vasculhar listas de internados na tentativa de encontrar com vida os desaparecidos.

Naquela ensolarada tarde, o epicentro da tragédia já não era o prédio da casa noturna, totalmente isolado, mas um complexo esportivo conhecido como "Farrezão", para onde foram levados os corpos.

As ruas do entorno ficaram tomadas. Dentro de um dos ginásios, familiares na arquibancada aguardavam ser chamados por um voluntário que, no sistema de som, ia aos poucos percorrendo todo o alfabeto: "Familiares de desaparecidos com nomes que começam com a letra 'I'", depois "J" e assim por diante.

No lado de fora, o vaivém de militares e de veículos do Exército, destacados para auxiliar na organização, davam um ar ainda mais calamitoso àquele cenário –as bases das Forças Armadas são uma das marcas da cidade gaúcha.

Era uma sucessão de pequenas cenas impactantes: o transporte e a preparação de dezenas e dezenas de caixões, a presença de um caminhão-frigorífico para conservar corpos, desmaios. Funerárias trabalhando em espaços improvisados com tapumes. Uma voluntária arrecadando tranquilizantes.

O ginásio principal do complexo esportivo abrigou um velório coletivo até a manhã seguinte. Jovens na faixa dos 20 anos, como a maioria dos mortos, eram a maior parte dos presentes.

Com a comoção na cidade, centenas de moradores se apresentaram como voluntários para tarefas que iam de oferecer lanches a até mesmo distribuir abraços e palavras de apoio.

O domingo 27 de janeiro terminou sem que ao menos houvesse certeza sobre o número exato de mortos, revisado nos dias seguintes.

  • Repórter de "Poder", FELIPE BÄCHTOLD foi correspondente da Folha em Porto Alegre de 2011 a 2016
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.