'Mil' nomes depois, rua onde a cidade de São Paulo nasceu começa a renascer

Crédito: Karime Xavier/Folhapress Visão noturna da rua Roberto Simonsen
Visão noturna da rua Roberto Simonsen

CHICO FELITTI
KARIME XAVIER
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A rua Roberto Simonsen tem dois quarteirões, mas contém a história de uma cidade inteira. A via, que começa no Pateo do Collegio, berço de São Paulo, foi uma das primeiras da cidade, e, depois do apogeu de receber um príncipe regente, o primeiro correio da cidade e o cartório de número um, passou por um processo de declínio a partir de 1970.

Imóveis foram abandonados ou caíram para dar lugar a estacionamentos para quem ia fazer negócios na praça da Sé, a passos de distância. Ainda há muitas vagas (são sete garagens em um quarteirão de menos de 50 metros), mas existe mudança por trás das paredes de casas que estavam esvaziadas ou em situação irregular. Surgiram ali nos últimos meses um set cinematográfico, um salão com bailes imperiais, uma galeria de arte e um dos maiores acervos de moda do Brasil.

SP, 464

"Essa rua certamente é uma das primeiras da cidade", diz Luís de Soares Camargo, diretor do Departamento do Arquivo Histórico Municipal. Camargo aponta uma menção oficial a essa rua em ata de 1683. Ela então se chamava "Rua que Vai da Matriz (Igreja da Sé) para o Carmo". Em 1685, há registro de que mudou de nome para rua de Santa Tereza. Em 1746, havia virado a rua do Carmo –que ainda hoje existe, mas um pouco adiante, depois da praça da Sé.

O nome atual foi adotado em 1948, em homenagem ao empresário santista Roberto Simonsen, um dos fundadores da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e membro da Academia Brasileira de Letras –onde ele inclusive morreu.

Passados 70 anos do batismo, o título da rua ainda não é um consenso na comunidade histórica. "O nome atual representou mais um golpe na memória do histórico trecho de São Paulo que tinha seu epicentro na igreja e convento do Carmo", diz o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, que escreveu "A Capital da Solidão", livro sobre os primórdios da cidade.

Sem números

Crédito: Karime Xavier/Folhapress Casarão em reforma na esquina da rua com a Floriano Peixoto
Casarão em reforma na esquina da rua com a Floriano Peixoto

O casarão amarelo sem número, imóvel mais amplo da rua, na esquina com a Floriano Peixoto, é onde funcionou a primeira agência dos Correios da cidade, e depois de décadas fechado deve voltar a abrir suas portas em breve.

O prédio de 1907 é um dos quatro que pertenceram à Caixa Econômica Federal e faziam parte do projeto Quadrilátero da Sé que, no começo dos anos 2000, prometia transformá-lo em um complexo cultural e residencial, num investimento de R$ 20 milhões que não se concretizou.

Os edifícios foram comprados em um leilão em 2016 por um investidor do setor imobiliário do ABC paulista que prefere o anonimato.

O plano inicial era construir um prédio alto, preservando a fachada dos casarões originais, mas o Conselho Municipal do Patrimônio da Cidade de São Paulo só autorizou um projeto de restauro, com estrutura interna original. A obra começou em 2018.

São 4.000 m2 de área, somados os quatro prédios, que são ligados por túneis tortuosos construídos por ocupantes anteriores. "Isso pode se transformar em uma loja, um centro cultural. O que não falta é potencial para esse espaço", diz Fabio Vital, arquiteto da Fator Vital, que está tocando a restauração.

O entulho retirado dos prédios enche o salão térreo do palacete, que é sustentado por vigas de metal e é grande o suficiente para virar uma academia de ginástica –"inclusive, é outro dos planos", diz o arquiteto Vital.

85

Crédito: Karime Xavier/Folhapress Entrada do prédio número 85
Entrada do prédio número 85

Num domingo recente, Seu Jorge e Wagner Moura entraram no prédio do número 85 da rua. Estavam lá para gravar cenas de "Marighella", longa-metragem que narra a vida do escritor e guerrilheiro Carlos Marighella (1911 - 1969), que Jorge personifica, com direção de Moura. Os cinco andares formam uma cidade cenográfica vertical. O edifício, de 1911, foi reformado pelo empresário Houssein Jarouche, e rebatizado de Prédio Sé. Cada andar ganhou uma aparência diferente, com inspiração fabril: tijolos à mostra, piso azulejado e janelas de metal originais. O espaço é alugado como locação cinematográfica, cenário para editoriais de moda e espaço para eventos.

79

Crédito: Karime Xavier/Folhapress As Cantoras da Velha Guarda: à frente, a violeira Maura Fernandes, Elisa Duval, Cleuza Evan, Giva Rocha, Salete Lima e Lola; ao fundo, Selma Spinelli e Selma Veiga, e os músicos Luiz Paulo e Donisete Fernandes
As Cantoras da Velha Guarda: à frente, a violeira Maura Fernandes, Elisa Duval, Cleuza Evan, Giva Rocha, Salete Lima e Lola; ao fundo, Selma Spinelli e Selma Veiga, e os músicos Luiz Paulo e Donisete Fernandes

Apesar do nome, o Cama e Café não é uma pousada. Ainda. O palacete, reformado para oferecer quartos, abriu em 2017 como um restaurante e espaço de eventos enquanto termina de se adequar para oferecer pernoites. Enquanto isso, o salão serve receitas imperiais, como a corvina assada com molho de camarão. "Era a predileta da Marquesa de Santos", diz o dono do lugar, Luiz Antônio Pereira dos Santos, que realiza ali saraus mensais. No dia 11 de fevereiro, haverá um baile de máscaras do grupo Cantoras da Velha Guarda. "Bote aí que somos crianças. A mais nova tem 70 anos", brinca a líder das oito vozes, Giva Rocha.

88

O estacionamento Pátio Park, no número 88, ocupa o lugar onde nasceu, na década de 1950, o Cine Tex, rebatizado de Cine Texas na década de 1970. Mas seu potencial para a sétima arte pode ser retomado em breve. O inquilino, Antonio Passos, tem um projeto para transformar os dois pavimentos de garagem, mais os dois andares de escritórios, em um centro cultural, com tela grande, cervejaria e jardim. "Esse lugar vai voltar a ser um cinema. Ele nasceu para isso", diz Passos, debruçado sobre uma planta baixa em que esse futuro de resgate já está traçado.

72

Crédito: Karime Xavier/Folhapress Érico Henrique Guarinho Castro, 51, presidente da Associação dos Funcionários do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, no número 72
Érico Henrique Guarinho Castro, 51, presidente da Associação dos Funcionários do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, no número 72

O prédio da Associação dos Funcionários do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, no número 72, ficará mais animado a partir do segundo semestre."Vamos abrir um estacionamento só para motos e um bar de motoqueiros no térreo", diz Érico Henrique Guarinho Castro, 51, presidente da entidade, já em meio a obras. Além do bar, que se chamará Marquesa Park em homenagem à Marquesa de Santos, haverá barracas de comida aos fins de semana. "Nosso sonho é que isso aqui se transforme numa Avanhandava", diz Castro, citando outra rua do centro que conseguiu se transformar em ponto turístico com seu
corredor de restaurantes italianos e fios de luzes que cobrem parte do céu.

108

Crédito: Karime Xavier/Folhapress Maria Montero, 43, dona da Galeria Sé.
Maria Montero, 43, dona da Galeria Sé.

O passado e o presente convivem num sobrado pintado de branco, no número 108. O prédio abriga um dos maiores acervos privados de moda do Brasil e também uma galeria de arte contemporânea. "É muito simbólico estar aqui", diz Maria Montero, 43, dona da Galeria Sé.

O espaço de arte chegou lá em 2010 junto com a Casa Juisi, que nasceu como um brechó e passou pelos Jardins antes de se mudar para o centro com suas 50 mil peças.

O acervo é um dos maiores do Brasil. Abriga décadas de figurinos de Rita Lee e peças das primeiras coleções de Alexandre Herchcovitch. Nos últimos meses, foi possível cruzar por ali com Sônia Braga e com estilistas da grife italiana Gucci. Em 2017, os dois negócios se expandiram e passaram a englobar um andar do número 94, vizinho, onde antes funcionava uma pensão.

"Ainda me dá uma coisa ver isso", diz Simone Prokopp, que toca a Juisi com Junior Guarnieri, 46, enquanto olha a rua pela janela do segundo andar. "A porta sempre ficou aberta, e só tivemos pequenos problemas", diz a galerista Maria.

Crédito: Karime Xavier/Folhapress Simone Prokopp, que toca a Juisi com Junior Guarnieri, 46
Simone Prokopp, que toca a Juisi com Junior Guarnieri, 46

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