Especialista em maconha medicinal é intimado a depor por apologia às drogas 

Professor Elisaldo Carlini estuda o princípio medicinal da Cannabis sativa há 50 anos e é professor emérito da Unifesp

Mariana Zylberkan
São Paulo
Elisaldo Carlini, diretor do Cebrid, foi intimado a depor em delegacia acusado de apologia às drogas (Filipe Redondo/Folhapress)

Há 50 anos a frente de pesquisas sobre os efeitos medicinais da maconha, o professor emérito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Elisaldo Carlini, 88, conta que levou um susto quando foi intimado a depor no 16º DP (Vila Clementino) na quarta-feira (21) por apologia às drogas. "Fiquei muito surpreso porque estou com 88 anos,  falei minha vida toda sobre maconha e agora que me descobriram? No momento em que a maconha está reconhecida no mundo como medicamento?", questionou

Formado em medicina pela Universidade Federal de São Paulo, em 1957, Carlini se tornou internacionalmente conhecido por se dedicar às pesquisas sobre drogas medicinais à base de Cannabis sativa, a princípio ativo da maconha.

A intimação para depor foi baseada em um simpósio sobre o uso terapêutico da maconha organizado por Carlini em maio do ano passado. Na programação, a mesa intitulada "Maconha e Filosofia" chamou atenção das autoridades. 

Entre cientistas e professores universitários, o simpósio convidou Geraldo Antônio Baptista, o Ras Geraldinho, fundador da primeira igreja rastafári no Brasil, para participar do debate sobre "Maconha e Filosofia". "Fomos ouvir outros saberes. Queríamos ouvir a experiência de alguém que tivesse sofrido as penalidades da lei por portar maconha e os danos que isso trouxe", disse o especialista. 

Por estar preso cumprindo pena de 14 anos por plantar maconha na sede da igreja, em Americana (SP), Ras Geraldinho conseguiu participar do encontro graças ao indulto do dia das Mães. A programação teve início poucos dias antes da data comemorativa, em São Paulo. "Pedimos ao juiz para antecipar em algumas horas sua saída da prisão para integrar a mesa, mas foi indeferido, lembra o professor. 

A decisão de indeferir a antecipação da saída de Geraldinho foi da juíza Corregedora dos Presídios da Região de Campinas, Carla dos Santos Fullin Gomes. 

O professor acredita que a juíza provocou o Ministério Público a ouvi-lo sobre o convite a Geraldinho. A intimação para depor foi enviada a pedido da promotora Rosemary Azevedo Porcelli da Silva, do Ministério Público em Campinas, que considerou o convite "forte indício de apologia ao crime", segundo Renato Filev, pesquisador também intimado a depor. "Achamos muito estranho, mas comparecemos à delegacia e pedimos que houvesse trancamento do processo", disse Filev.

Geraldo Batista, o Ras Geraldinho, foi convidado para participar de simpósio sobre maconha medicinal (Marlene Bergamo/Folhapress 19/08/2011)

Para Carlini, a intimação foi consequência direta desse pedido. "Quero lamentar a falta de entendimento da juíza por nunca ter participado de uma palestra sobre liberação da maconha para fins medicinais."

O Tribunal de Justiça de São Paulo informou que seus magistrados não podem se manifestar sobre questões judiciais, conforme determinado pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional. 

Carlini agora aguarda decisão judicial sobre a instauração de inquérito. "Foi uma experiência valiosa. Depois disso, fiquei com dó, não de mim, mas da ciência do meu país. Esse fato só mostra como a lei que proíbe o uso medicinal da maconha é inócua, estamos vivendo no século passado."

Repercussão

 A notícia de que o professor tinha sido intimado a depor em uma delegacia por apologia às drogas motivou entidades médicas e científicas a publicar notas de repúdio. 

Em nota, a Unifesp, onde Carlini integra o quadro de professores eméritos, manifestou preocupação e reforçou seu apoio ao pesquisador. "A universidade defende a democracia, em um momento no qual as universidades públicas, que desenvolvem pesquisa de qualidade, lutam para continuar realizando ciência e formação, além de projetos sociais."

A ABC (Academia Brasileira de Ciência), a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) também se manifestaram contrárias à intimação. "Elisaldo Carlini é imprescindível e sua carreira é uma apologia à vida", escreveram em nota conjunta a ABC e a SBPC. 

Maconha medicinal

Como é hoje Lei 11.343, de 2006, proíbe plantio, cultura, colheita e exploração de Cannabis, "ressalvada hipótese de autorização legal" para fins medicinais e científicos, em local e prazo predeterminados e mediante fiscalização

Sem regulamentação, porém, cultivo ainda não foi autorizado para nenhuma instituição de pesquisa, segundo a Anvisa. Universidades que desejam ter acesso à planta, por exemplo, precisam obter por importação ou doação previamente autorizadas

O que está em discussão

Ideia é elaborar uma norma para cultivo da Cannabis para fins medicinais e pesquisa, com foco em viabilizar pesquisas e produção de extratos para uso por pacientes e futuros medicamentos.

Modelo inicial, em estudo, prevê que haja normas para que empresas e universidades possam ganhar autorização para realizar o cultivo, de acordo com critérios rígidos, como limite de plantas e medidas de segurança. Cultivo não seria liberado à população

Um dos pontos em estudo é que possíveis produtos desenvolvidos pelas empresas, como extratos à base de canabidiol e outras substâncias derivadas da maconha, sejam notificados à Anvisa, que também teria acesso a informações sobre prescritores e pacientes -que poderiam adquirir direto das empresas

Como é em outros países

Canadá Produção e venda é feita por estabelecimentos autorizados; há cotas de cultivo por empresa e por produto

Holanda Governo mantém setor responsável pela produção de Cannabis para fins medicinais e científicos, e que pode receber solicitações de farmácias, universidades e institutos de pesquisa

Chile Monitora duas plantações autorizadas que visam extrair matéria-prima para elaboração de medicamentos

Linha do Tempo - Maconha Medicinal

Nov.2013 Após ver informações na internet sobre testes com canabidiol, um dos derivados da maconha, a família da brasileira Anny Fischer, que sofre de uma síndrome rara, decide importar dos Estados Unidos um óleo rico na substância para a criança

Mar.2014 Uma das tentativas de importação falha e o canabidiol é barrado na alfândega. A família conta sua história a um jornalista, que lança o documentário "Ilegal" sobre o caso

Abr.2014 A família de Anny consegue laudo médico da USP de Ribeirão Preto e entra na Justiça para conseguir importar o produto. O pedido é aprovado. Após o caso, Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) passa receber mais pedidos de autorização para importação de produtos à base de canabidiol

10.out.2014 Conselho Regional de Medicina de São Paulo autoriza a prescrição de canabidiol no Estado

11. dez.2014 Conselho Federal de Medicina autoriza médicos a prescreverem o canabidiol, mas somente para crianças com epilepsia e que não tenham tido sucesso em outros tratamentos

15.jan.2015 Anvisa libera uso medicinal de produtos à base de canabidiol, um dos derivados da maconha, retirando-o de uma lista de substâncias proibidas e colocando-o em uma lista de substâncias controladas

Mar.2015 Cresce volume de decisões judiciais que obrigam a União a fornecer o canabidiol a pacientes com diferentes tipos de crises convulsivas, não apenas as epiléticas

23. abr.2015 Anvisa simplifica regras para importação de produtos à base de canabidiol e cria lista de produtos que podem ter facilitado processo de autorização para importar

Ago. e set.2015 STF começa a discutir se é crime portar drogas para uso próprio. Julgamento, no entanto, foi suspenso após pedido de vistas do ministro Teori Zavascki

21.mar.2016 Após determinação judicial, Anvisa publica resolução que autoriza prescrição e importação de medicamentos com THC, um dos princípios ativos da maconha. Antes, essa substância fazia parte da lista daquelas que não poderiam ser objeto de prescrição médica e manipulação de medicamentos no país

22.nov.2016 Anvisa aprova critérios para uso de medicamento à base de maconha e abre espaço para que remédios à base da planta possam obter registro para venda no país

Nov. e dez. 2016 Três famílias, duas do RJ e uma de SP, conseguem habeas corpus que as permitem plantar e extrair óleo de maconha para uso medicinal e próprio

Jan. 2017 1º medicamento à base de maconha, Mevatyl, composto por THC e canabidiol e indicado para espasticidade, ganha registro na Anvisa para chegar ao mercado brasileiro

2017 Anvisa inicia missões internacionais para países que regulamentam cultivo de Cannabis para pesquisa e produção de medicamentos e planeja medida semelhante no Brasil 

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