‘Traumas’ do passado deixam EUA em alerta contra a febre amarela

Doença já forçou presidente a fugir; surto hoje é tido como improvável

Angela Pinho
São Paulo

Uma epidemia de febre amarela mata cerca de 10% da população da capital do país e força o presidente a fugir. Aconteceu não em Brasília, onde apenas um caso da doença foi registrado desde julho do ano passado, mas na Filadélfia, em 1793. O mandatário que teve que sair às pressas foi George Washington, que governou os Estados Unidos de 1789 a 1797.

O episódio tem sido lembrado por médicos e pesquisadores americanos desde que começaram a aumentar os casos da doença no Sudeste brasileiro no ano passado. Inicialmente concentrados em Minas Gerais, em 2016 e 2017, os registros, após alguns meses de intervalo, atingem agora principalmente o Estado de São Paulo.

“Até cerca de um século atrás, a doença causou regularmente epidemias urbanas nos Estados Unidos”, escreveu em maio Seth Berkley, diretor da organização Vaccine Alliance, em artigo no “New York Times” a propósito dos casos no Brasil.

“Se e quando [o vírus] chegar, conhecimento será algo crítico para evitar a sua propagação, principalmente porque poucos médicos no Estados Unidos já viram um caso e quase ninguém é vacinado”, acrescentou.

Antes dele, o renomado imunologista Anthony Fauci já havia escrito artigo sobre a situação no Brasil em conjunto com Catharine Paules.

Para a dupla, embora fosse “muito improvável” um surto em território americano, em uma era de frequentes deslocamentos internacionais, haveria a possibilidade de o vírus atingir alguma área do país por meio de um viajante infectado, caso houvesse a urbanização da doença no Brasil —ou seja, se ela vier a ser transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, que circula em cidades. 

Isso não ocorre desde 1942. Os casos registrados no Brasil desde então são de mosquitos de área de mata.

Ainda assim, a possibilidade de a transmissão urbana ocorrer poderia vir a representar uma ameaça para áreas mais ao sul dos Estados Unidos, como a Flórida, onde há presença de aedes.

“À luz da natureza séria desta doença historicamente devastadora, a conscientização e o preparo da saúde pública são críticos”, escreveram Fauci e Paules.

A preocupação com a chegada do vírus foi manifestada no mesmo período em que a produção local da única fábrica de vacina de febre amarela nos Estados Unidos era interrompida.

Como solução provisória, o país passou a usar doses importadas para imunizar viajantes —há apenas quatro fabricantes no mundo credenciados pela OMS (Organização Mundial da Saúde), o maior deles o instituto de Bio-Manguinhos, no Brasil.

Para afastar a possibilidade de o vírus entrar em solo americano, há duas semanas, o CDC (Centro de Controle de Doenças) emitiu um alerta para prevenir os turistas em direção a áreas de risco no Brasil —que, seguindo a orientação da OMS, incluem todo o Estado de São Paulo.

CONTRASTE

A preocupação atual com a disponibilidade de vacina contra febre amarela nos Estados Unidos contrasta com o papel que o país teve no combate à doença.

Foi lá que o sul-africano Max Theiler desenvolveu pesquisas que levaram ao desenvolvimento da imunização. Elas lhe renderam o prêmio Nobel em 1951. 

No início do século 20, agentes da Fundação Rockefeller vieram do país para  percorrer o Brasil em uma campanha de combate ao aedes em conjunto com autoridades brasileiras. O mosquito chegou a ser declarado extinto em 1955, mas voltou às cidades brasileiras em definitivo nos anos 1970. A fundação também ajudou a financiar o laboratório de Bio-Manguinhos.

Antes disso, a eliminação de focos do mosquito também havia possibilitado o término da construção do Canal do Panamá, em 1914. Milhares de trabalhadores morreram vítimas da doença durante a obra.

Embora tais episódios da história americana sirvam de alerta, a doença não poderia atingir os EUA com a mesma devastadora força de antes, afirma Thomas Monath, ex-diretor da área de doenças transmitidas por vetores do CDC e um dos maiores especialistas do mundo no vírus.

“O nível de saneamento e tolerância a picada de mosquito são fundamentalmente diferentes”, disse à Folha. Ele ponderou que, quando o zika foi introduzido nos EUA recentemente, a dimensão dos casos não foi muito grande.

Lembrou ainda que algumas condições da época da epidemia na Filadélfia, como baixo nível de saneamento, áreas densamente povoadas e população de aedes, estão mais presentes em outros lugares do mundo — “como a favela da Rocinha”— do que nos Estados Unidos.

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