Marco Aurélio Canônico
Rio de Janeiro

Se “o Rio de Janeiro é um laboratório para o Brasil”, como afirmou o general Braga Netto sobre a intervenção federal que comanda no estado, o Haiti foi o campo de teste onde os militares se prepararam para a missão fluminense.

Por 13 anos, a partir de 2004, as Forças Armadas nacionais estiveram à frente do contingente militar da Minustah (Missão de Estabilização da ONU no Haiti) —37,5 mil brasileiros passaram pelo país, atuando na segurança pública em áreas urbanas com muitas favelas e violência.

As diferenças entre a situação do Rio e a do Haiti, porém, são muito maiores do que as semelhanças, segundo o antropólogo Pedro Braum, 34.

Coordenador do programa de segurança da ONG Viva Rio, convidada pela Minustah para atuar no Haiti, Braum vem passando longas temporadas no país desde 2010 para auxiliar na implementação de polícias comunitárias.

Em entrevista à Folha por telefone, de Porto Príncipe, ele diz que, ao contrário da intervenção federal no Rio, a missão da ONU foi planejada por meses, envolveu civis e militares e se preocupou não apenas com a repressão ao crime, mas com as ações sociais.

“Essa intervenção no Rio aconteceu meio que de supetão. Não havia um plano de ação, metas. O governo atuará nas áreas sociais? Haverá relatórios, indicadores? Como é que vamos saber se as operações dão resultado?”, questiona o antropólogo.



Pedro Braum
Antropólogo Pedro Braum, no Haiti - Divulgação

RAIO-X

Idade
34 anos

Formação
Doutor em antropologia pela UFRJ

O que faz
Integrante da ONG Viva Rio, trabalha na implementação de polícias comunitárias no Haiti



Folha - É correto ver a Minustah como uma preparação para os militares fazerem ações como a intervenção no Rio?

Pedro Braum - O Brasil vem participando sistematicamente de missões da ONU ao longo da última década. É inegável que elas são utilizadas como forma de treinamento, inclusive numa área específica da doutrina militar que eles chamam de guerra irregular, que é a que acontece em contextos urbanos, por vezes contra guerrilhas, em que você não consegue identificar claramente o inimigo.

A utilização das tropas no contexto da violência urbana do Rio já vem acontecendo há bastante tempo. Do ponto de vista do Exército, a experiência haitiana legitima e dá mais confiança no sentido de ter uma ação mais efetiva na segurança pública. Mas, do ponto de vista estratégico, o simples fato de ter tido essa experiência não garante o sucesso. As realidades são diferentes.

Quais as semelhanças entre o trabalho que as tropas fizeram no Haiti e o que podem fazer na intervenção do Rio?

As Forças Armadas brasileiras tiveram uma posição de comando na Minustah, mas faziam parte de uma operação das Nações Unidas. Havia um contingente militar com uma maioria de brasileiros, mas também um contingente civil, com seções de direitos humanos, de assuntos políticos, que lidavam com as autoridades do país e líderes locais. Havia ainda uma seção grande que financiava projetos sociais e de redução de violência. Havia também a Unpol, a polícia da ONU, que dava suporte à Polícia Nacional do Haiti.

Como se dava o controle dessa operação?

É um pacote que tinha um objetivo bem definido: a estabilização política do país. Isso não foi planejado da noite para o dia, levou meses. Havia um mandato, definido pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, com acompanhamento da comunidade internacional. E havia reportes: a cada seis meses, a principal pessoa da missão no país, que era um civil, representante do secretário-geral da ONU, tinha de enviar um relatório para o Conselho de Segurança. Esses relatórios são públicos, trazem dados sobre violência, sistema prisional, estatísticas criminais, conjuntura política, direitos humanos. Havia um protocolo de ação, partia de uma visão mais integrada. E, de fato, o Brasil teve uma posição preponderante. O país, desde 2003, vinha num processo terrível de instabilidade, com um golpe de Estado, milícias se sublevando contra o governo. Era uma violência com um viés político muito forte e, na capital, isso se misturava com a criminalidade comum.

No Rio, o interventor comanda todas as forças de segurança do Estado. Foi assim no Haiti?

Em 2004, quando a violência política aumentou muito e a Minustah foi enviada, a polícia haitiana tinha pouco mais de 4.000 agentes. Hoje, tem em torno de 14 mil. Sempre teve um papel ativo. Os chefes militares brasileiros e a Unpol nunca tiveram ingerência sobre a polícia do Haiti, sempre foi complementar.

As tropas não fizeram papel de polícia no Haiti, então?

Nos primeiros anos, tinham um papel muito proativo na segurança. Faziam operações, patrulhas, entravam nos becos, até nas casas das pessoas. Entravam em conflito direto, faziam prisões, interrogatórios eventualmente, tinham um papel de polícia, até porque a haitiana tinha uma fraqueza muito grande. Esse papel foi sendo atenuado. No final da missão, em 2017, o Exército já tinha menos atribuições, era até difícil vê-lo na rua.

Os abusos e crimes cometidos pelos soldados foram julgados em que tipo de tribunal?

Os militares tinham que respeitar os protocolos da ONU e seus protocolos internos. A Justiça haitiana não tinha jurisdição sobre os casos de excesso. O que existem são movimentos de reparação, de organizações haitianas. O mais famoso é devido ao cólera, que entrou no Haiti a partir da Minustah. Há coisas parecidas relacionadas à violência ou abuso sexual cometidos por membros da Minustah. 

A intervenção vai atacar a corrupção policial. Isso era um problema no Haiti? 

A polícia haitiana tem problemas, acusações eventuais de truculência, corrupção, mas não tem esse caráter de uma disfunção sistêmica, quase viral, como no Rio. Um problema grande é a implicação de policiais nos grupos locais que controlam, politicamente e com uso de armas, territórios nas áreas mais pobres. 

A criminalidade no Haiti é comparável à do Rio?

Há diferenças importantes. No Rio, o grande foco é o tráfico. Há grupos armados que mantêm o controle territorial e de populações. No Haiti, o tráfico não tem esse controle territorial, tem uma característica quase microcelular. São diversos pequenos grupos sem rivalidade entre si, não há um movimento de centralização nas favelas, um grupo que tenta dominar os outros, nem um movimento de expansão, de conquista de novos territórios.

Os criminosos haitianos utilizam fuzis?

Até usam, mas em quantidade muito menor do que no Rio. O grosso da violência é por outros motivos. Por exemplo, há extorsão, grupos armados que cobram dinheiro de comerciantes. E, isso é muito importante, contatos com políticos. Projetos de prefeituras, do governo nacional que entram nessas regiões controladas por grupos que fazem de tudo um pouco: têm controle armado sobre o território, fazem atividades sociais na região e se dedicam à política.

E a Minustah conseguiu acabar com essas milícias?

Não, isso não acaba. Logo após a chegada das tropas brasileiras, houve um aumento da violência. Ao longo de 2005 houve uma melhoria gradativa com as operações e um programa padrão da ONU. Chama-se DDR: desarmamento, desmobilização e reinserção. Os grupos aceitam entregar suas armas em troca de alguns benefícios. Vários grupos armados passaram a negociar, aderiram ao programa.

A missão cumpriu seu papel?

Embora a crise política tenha sido exterminada, os índices de criminalidade aumentaram nos últimos anos. Entre 2007 e 2015, a taxa de homicídios dobrou. Saiu de 5 por 100 mil habitantes para 9,6. É baixa, bem menor do que a do Brasil [28,9/100 mil].

E o que explica esse aumento?

Existe a questão da subnotificação: como agora há mais polícia, ficamos sabendo de mais casos. Mas, sobretudo a partir do terremoto [2010], houve aumento importante dos homicídios. Há questões relacionadas à crise econômica do país. Mas houve um aumento ano a ano, que se estabilizou a partir de 2015.
De dois anos para cá, a situação está mais calma.

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