Descrição de chapéu Entrevista da segunda polícia

Todo traficante, mesmo o menor, trabalha para o PCC, diz juíza corregedora

Da área de inquéritos de SP, ela diz que facção precisa ser enfrentada por inteiro

Rogério Gentile
São Paulo

A juíza Patrícia Álvares Cruz, 49, ficou conhecida em 2005 devido ao caso de uma empregada doméstica que havia sido presa em flagrante após tentar furtar um xampu.

Como era reincidente, a prisão foi mantida pela juíza e pelo Tribunal de Justiça, que negou pedido de habeas corpus. Na cadeia, a mulher foi agredida por detentas e perdeu a visão direita.

Em janeiro, Patrícia assumiu o cargo de corregedora do Departamento de Inquéritos Policiais de São Paulo (Dipo), órgão responsável pelas audiências de custódia.

Todo preso em flagrante, passa, em 24 horas, por uma audiência de custódia na qual um juiz avalia a legalidade e a necessidade de manutenção da prisão.

A juíza Patrícia Cruz, corregedora de inquéritos policiais de SP
A juíza Patrícia Cruz, corregedora de inquéritos policiais de SP - Adriano Vizoni/Folhapress

A nomeação da juíza é contestada pela Defensoria Pública, pela Pastoral Carcerária e pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que consideram que houve desrespeito à lei complementar estadual 1.208/2013.

Dizem que a escolha não poderia ter sido feita por ato discricionário da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça, mas sim pelo Conselho Superior da Magistratura a partir de lista de candidatos e da análise do histórico profissional dos interessados.

À Folha a juíza diz que essa lei não regula a nomeação e que a sua atuação, “rigorosa na aplicação da lei”, incomoda entidades que “defendem a libertação imediata de traficantes primários”.

Para a juíza, todo traficante, por menor que seja, deve ser tratado com rigor, “uma vez que trabalha, direta ou indiretamente, para o PCC”.

 

Folha - A senhora se considera uma juíza dura?
Patrícia Álvares Cruz - Não. Sou uma juíza comprometida com o cumprimento da lei. O rigor na aplicação da lei é a garantia que a sociedade tem de um Judiciário mais justo, mais coerente, menos dependente das opiniões pessoais desse ou daquele juiz. Quando deixamos de lado esse compromisso, criamos uma situação de insegurança jurídica que acaba gerando a sensação de impunidade que revolta a população e estimula tanto a vingança privada quanto a criminalidade. Além disso, legislar não é função do Judiciário, mas daqueles que foram eleitos para isso.

É verdade que, desde que a sra. assumiu a chefia do Dipo, subiu de 52% para 75% o índice de manutenção de prisões? Esses dados não são verdadeiros. A imprensa chegou a divulgar índice de 90% de prisões decretadas. O índice de prisões dos últimos dois meses, desde quando assumi a coordenadoria, é de 64%, inferior ao de 67% das audiências de custódia realizadas no resto do estado, de novembro e dezembro de 2017. Aqui na capital, em 2017, o índice de prisões decretadas por juízes não integrantes do Dipo nos plantões aos fins de semana é muito semelhante, de 63%.

Em São Paulo, o tráfico é monopólio da facção PCC?
Sim, a distribuição é monopólio do PCC e das facções criminosas com quem tem parceria. A sua força é enorme. Controla grande parte das comunidades do estado e possui uma Justiça própria, o chamado ‘Tribunal do Crime’.

O pequeno traficante deve ser tratado com rigor?
Todo traficante deve ser tratado com rigor, respeitados os benefícios que a própria lei concede aos que preenchem certos requisitos. Todo traficante, por menor que seja, trabalha, direta ou indiretamente, para o PCC, já que toda a droga vendida no estado é distribuída pela facção. Sem ele, toda uma estrutura criminosa deixaria de existir. E situações como a que vemos hoje no Rio seriam evitadas. Não é verdade que a polícia só prende pequenos traficantes. O que ocorre é que os pequenos são aqueles que se expõem, vendendo as drogas em via pública, e por isso a polícia tem mais acesso a eles. Além disso, o fato de portar pouca droga não significa que seja pequeno. Nenhum traficante carrega toda a droga que vai vender. Na prática, vemos que ele mantém consigo pouca quantidade, justamente por saber dos benefícios que isso vai lhe trazer caso seja preso, e deixa o restante em local desconhecido da polícia. 

A Defensoria e outras entidades pediram ao CNJ a cassação da sua nomeação alegando desrespeito à lei.
Essa lei não regula a nomeação do Dipo da capital, mas a de departamentos estaduais de inquéritos policiais que nem mesmo foram instalados. A lei é claríssima e não deixa margem para interpretações. É de surpreender que o seu significado tenha passado despercebido para as entidades que buscam cassar a minha nomeação. Ademais, o critério de nomeação tem sido o mesmo desde 1985.

No ofício, citam o aumento do número de prisões. Esse é o real motivo para o pedido de cassação?
O aumento é um dos motivos que alegam no pedido. As prisões por tráfico têm causado incômodo a essas entidades, que defendem a libertação imediata dos traficantes primários. Mas o número de prisões preventivas não destoa das ordenadas pelos juízes de fora da capital nem dos do plantão. Contra eles não houve indignação. Não é questão puramente jurídica. Mesmo porque, se fosse, recursos há, e muitos, à disposição da defesa. Bastaria lançar mão deles para corrigir eventuais ilegalidades.

Em 2004, uma mulher foi presa por tentar furtar um xampu. Agredida na cadeia, perdeu a visão. Até hoje chamam a sra. de ‘a juíza do xampu’.
Foi veiculado que eu a condenei. Não é verdade. A ré foi presa em flagrante. Era reincidente e, por isso, a prisão foi mantida. Impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça e não obteve a sua soltura. No interrogatório, mostrou-se extremamente agressiva. Não foi possível perceber, então, que padecia de enfermidade mental, tanto que a defensora pública nada requereu. Na audiência seguinte, tomei conhecimento de que fora vítima de violência e percebi que apresentava problemas mentais. A ré era violenta e desequilibrada e envolveu-se em conflito com as demais presas, sendo por elas agredida e lesionada gravemente. Imediatamente, sem que isso tenha sido requerido pela defensora, cuidei de evitar que retornasse ao estabelecimento prisional e providenciei a sua internação em hospital. Foi submetida a exame psiquiátrico e se apurou que sofria de distúrbio mental e que deveria ser internada. Era necessário ministrar-lhe medicamentos que, voluntariamente, não tomaria. Isso é o que se chama de absolvição imprópria. A ré foi vítima de terrível fatalidade, mas não havia como eu prever ou evitar a situação.

Por que a sra. não considera o princípio da insignificância?
A própria lei cuida de dar solução justa a essas hipóteses, sem que seja necessário lançar mão de princípios. Àquele que furta coisa avaliada em até um salário mínimo a lei prevê a aplicação do chamado ‘privilégio’. Isso significa que, na maioria dos casos, a pessoa que furta coisas de pouco valor acaba sendo condenada apenas ao pagamento de uma multa no valor aproximado de R$ 300. Não muito mais do que teria que pagar caso cometesse uma simples infração de trânsito. Essa é uma resposta justa e razoável àquele que, mal ou bem, cometeu um crime, contra uma vítima que também merece proteção.

A sra. disse que esse princípio é uma construção jurisprudencial. Mas não é esse o papel da jurisprudência, impedir a estagnação do direito e evitar que a inflexibilidade de uma lei cause injustiça?
Não há dúvida de que a jurisprudência é importantíssima fonte do direito. Ela serve para preencher as lacunas da lei e é um instrumento de Justiça, mas não pode substituir o legislador para definir o que é crime e o que não é.

E a superlotação das cadeias?
Não é verdade que ocorra um encarceramento em massa no Brasil, que se prenda muito e mal. São cerca de 300 mil os presos em regime fechado no país, com uma população de cerca de 200 milhões. O Brasil não está nem mesmo entre os cem que mais prendem. A lei prevê incontáveis benefícios aos criminosos. Somente aqueles que cometem crimes graves ou os reincidentes, que insistem em cometer crimes, são efetivamente encarcerados. O problema carcerário é puramente de investimento do estado. Deveria o Judiciário simplesmente libertar os presos que representam risco à população para solucionar um problema do Executivo?

A sra. concorda com quem diz que a liberação das drogas fragilizaria as facções e reduziria a criminalidade?
Não me convenci de que a liberação da maconha teria impacto na redução do tráfico. Li recentemente no The Guardian uma matéria que citava relatório do sindicato de policiais da Holanda, segundo o qual o país teria se tornado um verdadeiro narco-Estado. Grande parte do ecstasy distribuído na Europa e nos EUA é produzida no sul da Holanda por facções criminosas marroquinas.


Raio-XNome Patrícia Álvares Cruz
Idade 49 anos
Cargo Juíza de Direito, corregedora do Departamento de Inquéritos Policiais
Formação Faculdade Católica de Direito de Santos

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