Descrição de chapéu Tragédia no rio doce

Fundação recebe ultimato após denúncias sobre vítimas de Mariana

Ministério Público e Defensorias questionam ações de reparação social e econômica 

Casa destruída e ainda com sinais da lama dois anos após rompimento da barragem da Samarco
Estragos no subdistrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), em imagem feita em novembro de 2017, dois anos após rompimento da barragem da Samarco - Marcelo Leite - 1º.nov.2017/Folhapress
Carolina Linhares
Belo Horizonte

O Ministério Público Federal e mais seis instituições expediram uma recomendação à mineradora Samarco e às suas controladoras BHP Billiton e Vale para interromper o que consideram violações nos direitos dos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, em novembro de 2015.

Para os órgãos, a Fundação Renova, criada pelas mineradoras para executar ações de reparação, não consegue cumprir seu propósito e, ao contrário, cria mais empecilhos para que os atingidos sejam indenizados e tenham seu modo de vida restabelecido. 

“Ao invés de resolver problemas, a Renova cria novos problemas”, afirmou o procurador José Adércio Sampaio, do Ministério Público Federal. “Por mais que fossemos pessimistas, jamais imaginaríamos que a situação dois anos e meio depois estaria como está.”

As empresas têm um prazo de 20 dias para enviarem uma resposta à recomendação, informando quais providências tomaram. Caso contrário, o Ministério Público poderá questionar judicialmente a existência da Fundação Renova e apurar as responsabilidades civis e criminais daqueles que, segundo o órgão, abusaram do direito dos atingidos. 

A recomendação questiona pontos como dificuldade de acesso a informações e ação unilateral, sem a participação dos atingidos, nos programas de recuperação socioeconômicos executados pela Renova. 

Os procuradores apontam, por exemplo, casos em que atingidos não obtiveram explicações satisfatórias de por que não foram considerados impactados pela fundação. Ou uso de linguagem técnica para lidar com as comunidades afetadas. 

Segundo a recomendação, a Fundação Renova tem informado equivocadamente os atingidos sobre prazo final de cadastramento e sobre prescrição no direito à reparação de danos para induzi-los a aceitar rapidamente os termos propostos, sem que haja negociação. 

Ainda entre as violações listadas pelas entidades está a obrigação de que os atingidos renunciem a ações judiciais ao integrarem o programa de indenização da Renova. Também aparecem a falta de assistência jurídica gratuita, o não reconhecimento de pescadores afetados e a exigência de que os atingidos comprovem seus danos mesmo se eles não têm a capacidade de mensurá-los.

A Fundação Renova foi criada para executar programas de reparação a partir de um acordo assinado em março de 2016 entre as mineradoras e os governos federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo, sem a participação do Ministério Público e ainda sem homologação na Justiça. 

“O intuito da recomendação é fazer cessar as irregularidades cometidas pela Renova nos programas definidos pelo acordo”, disse a promotora do Ministério Público de Minas Gerais Andressa Lanchotti. 

O Ministério Público também assinou um termo preliminar com as mineradoras, em janeiro de 2017, para contratação de especialistas, realização de audiências públicas e maior participação dos atingidos na reparação dos danos. 

O procurador José Adércio, porém, defendeu uma reformulação na Renova para que o acordo vá para frente. "Essa negociação tem se arrastado muito e nós precisamos, até para que haja um reposicionamento dessas empresas, fazer a apresentação desta recomendação. Parece claro, neste momento, que a manutenção das negociações dependem muito de um reposicionamento da fundação e igualmente das empresas", disse. 

A recomendação é assinada por Ministério Público Federal, Ministério Público de Minas Gerais, Ministério Público do Espírito Santo, Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública de Minas Gerais e Defensoria Pública do Espírito Santo. 

O documento alerta as empresas para que cumpram as leis, a Constituição e os tratados internacionais relativos ao caso. O rompimento da barragem de Fundão, há dois anos, levou à morte de 19 pessoas e espalhou lama por 650 km, desde Mariana (MG) ao litoral do Espírito Santo.

OUTRO LADO

A Fundação Renova informou em nota que a recomendação aborda questões que já são tratadas internamente e que estão passando por evoluções. "Os reflexos desses avanços nos programas são resultado de uma construção coletiva continua."

Afirmou ainda que prestará informações sobre o avanço dos programas de recuperação e seguirá "sua política de transparência e seriedade no trato com todos os envolvidos".

"A Fundação Renova é parte de um sistema formado por mais de 70 entidades comprometidas com a reparação dos impactos causados pelo rompimento de Fundão, modelo reconhecido por órgãos internacionais como a ONU Meio Ambiente, universidades e órgãos públicos brasileiros.", diz a nota.

E continua: "A Fundação Renova mobiliza diariamente equipes de campo orientadas por áreas especializadas em Direitos Humanos e Compliance para buscar as soluções para todos os atingidos. É composta por centenas de pessoas envolvidas dia e noite na maior ação de recuperação ambiental e socioeconômica em construção no país. Um grupo formado não somente pelos técnicos da Renova, mas por uma soma de esforços individuais e de dezenas de entidades oriundas de órgãos públicos, de organizações civis, de empresas, de universidades e instituições de pesquisa, além de representantes das comunidades atingidas."

Também em nota, as mineradoras Vale, Samarco e BHP disseram que "reiteram o compromisso com os esforços de compensação e remediação, que estão a cargo da Fundação Renova, e que foram definidos pelo acordo firmado com os entes federativos da União e dos estados do Espírito Santo e de Minas". 

As empresas destacam, ainda, "seu compromisso com as negociações em curso para realização de acordo com as partes envolvidas, permanecendo à espera do retorno do Ministério Público, conforme previamente pactuado", afirma a nota.


As críticas à Fundação Renova

Trechos das falas de procuradores e defensores

José Adércio Sampaio, procurador do MPF
"Há a visão de que os programas e políticas para reparação estão bem encaminhados. O cenário é bem diferente deste que se faz presente em relatórios e programas institucionais das três empresas responsáveis pela tragédia, e pelo seu braço terceirizado chamado Fundação Renova. 
Esse braço terceirizado que deveria adotar todas as medidas para minorar o dano das vítimas tem violado o direito dessas vítimas. É uma tragédia dentro da tragédia. 
As vítimas a essa altura deveriam ter os direitos reparados. E o que encontramos é pressões e chantagens para que os atingidos aceitem as condições impostas pela Renova."

Rafael Campos, defensor público do Espírito Santo
"A gente tem violações de direitos humanos decorrentes do próprio desastre, mas a gente também também tem violações decorrentes de uma ineficiência do sistema criado para tentar gerir a consequência do desastre. Até hoje as defensorias e os ministérios públicos têm muita dificuldade de entender qual o critério está sendo adotado [para definir quem foi atingido]. Estamos tendo notícias de negativas de reconhecimento da condição de atingido sem fundamentação idônea. Não há hoje uma instância revisora dessas decisões."

Helder Magno da Silva, procurador do MPF
"Eu pude conhecer o que é mal feito pela Renova nas comunidades. Usam uma linguagem empolada, de difícil compreensão aos atingidos. [A Renova] não reconhece o atingido como sujeito de direito. A fundação leva para seu dia a dia o modelo das empresas mineradoras. 
Há um trabalho constante de desinformação, de desmobilização dos atingidos, uma atuação propagandística e destruidora dos vínculos locais. 
A Renova é um instrumento de violação em vez de um instrumento de reparação."

Paulo Trazzi, procurador do MPF
"Quem é a Fundação Renova, quem são as empresas para dizer quem é atingido, quem sofreu danos e como está sofrendo esses danos? É o causador do dano que vai apontar o dedo e dizer quem tem esse direito? Esse é o sistema de Justiça que imaginamos? Para que esse processo de reconhecimento de atingido seja feito minimamente de maneira adequada, tem que partir do autorreconhecimento. Somente a pessoa atingida pode dizer como ela sofre os danos." 

Mariana Andrade, defensora pública do Espírito Santo
"A própria Fundação Renova incentiva a discriminação da mulher nas comunidades. Temos relatos de atingidas que em vez de serem consideradas pescadoras, foram consideradas lavadeiras." 

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