Descrição de chapéu stf

Registro linguístico pode variar de acordo com a situação e o assunto

Ideia de que há a língua "certa" de um lado e as variedades de outro vai na contramão dos estudos científicos

Thaís Nicoleti de Camargo
São Paulo

Me avisaram do meu gabinete que eu ‘tava com uma marca de batom, um beijo, no rosto. É o único problema que eu não preciso nessa altura da minha vida.”

A frase foi dita pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), durante a votação do pedido de habeas corpus para o ex-presidente Lula no último dia 4 de abril.

Antes de retomar a leitura de seu voto, depois de aparte do ministro Dias Toffoli, Barroso permitiu-se um momento de descontração.

Não paira dúvida acerca da formalidade do ambiente nem se questiona o grau de conhecimento da língua portuguesa do magistrado, mas o fato é que ele não disse “Avisaram-me”, “estava” ou “problema de que eu não preciso nesta altura”. Será que o ministro errou?

Segundo o sociolinguista Carlos Alberto Faraco, professor titular aposentado e ex-reitor da Universidade Federal do Paraná, não há cortes rígidos entre formal e informal, entre oral e escrito, entre “certo” e “errado”.

O ministro Luís Roberto Barroso faz expressão com o rosto em sessão plenária do STF
O ministro Luís Roberto Barroso em sessão plenária do STF - Pedro Ladeira/Folhapress

“A mudança estilística do ministro está ligada ao assunto; as pessoas modulam a língua de acordo com interlocutores, ambiente, assunto, gênero do discurso etc. O mais importante é fugir sempre das dicotomias. Dicotomizar a realidade linguística é falseá-la; a língua varia muito seja na fala, seja na escrita”, afirma.

Além disso, segundo o professor, esse registro linguístico já pertence à norma culta, embora não corresponda por inteiro à norma-padrão. “São muito frequentes as orações relativas cortadoras (do tipo de “O livro que eu gosto”, com apagamento da preposição “de”) nos debates do STF. Os falantes, mesmo os altamente escolarizados, nem se dão conta de quanto a língua que falam está mudando”, diz Faraco.

Segundo o professor, é preciso distinguir “norma culta” (o registro efetivamente usado pelo segmento social letrado) de “norma-padrão” (modelo convencional de correção estipulado por gramáticos). “Os falantes, mesmo os altamente escolarizados, nem notam quanto a língua que falam está mudando”, diz.

 
A ideia de que há a língua “certa” de um lado e as variedades de outro, ainda presente no senso comum, vai na contramão dos estudos científicos.

É com base nos corpora (conjuntos de dados linguísticos sistematicamente coletados e representativos dos usos) que se pode afirmar que a norma culta já não se identifica plenamente com a norma-padrão, nem mesmo nas situações de formalidade.

Em suma, a norma culta de hoje já não é a língua de Rui Barbosa (1849-1923) embora a gramática normativa nos remeta com frequência a modelos da época do célebre orador, escritor e jurista baiano.

Esse desencontro ocorre porque a língua está em constante mudança, enquanto o padrão tradicional de correção tende a se manter estático desde as suas origens, no século 19, quando se pautou pelos usos de Portugal.

A norma-padrão é, segundo Faraco, um modelo idealizado. “O resultado do abismo que se cria entre as práticas correntes e as regras postuladas como padrão é esta espécie de anomia linguística em que vivemos no Brasil. O ensino não tem norte e o uso não tem norte. Há uma grande insegurança linguística entre os falantes porque muitas regras não fazem sentido em confronto com as práticas concretas”, afirma. 

Faraco lembra que o gramático Celso Cunha (1917-1989) já apontava o problema brasileiro da “dualidade de normas”, ou seja, há uma realidade praticada e uma prescrita. “Isso não é um problema só brasileiro. Criou-se na tradição histórica da América Latina a ideia de que a língua como se fala nas colônias é incorreta, descuidada, portanto a língua modelar (a que devemos usar na escrita etc.) mora em outro lugar. O espanhol mora em Madri e o português mora em Lisboa”, conclui. 

 

FOSSO SOCIOLINGUÍSTICO

Além disso, no Brasil, coexistem diversas normas linguísticas, relacionadas a espaços geográficos e a estratos sociais (a de maior prestígio é a norma culta). “É muito importante perceber a vinculação entre a cultura escrita, a escola, o tempo de escolaridade, o grau de renda e a língua que a pessoa fala”, afirma o professor.

Autor da “História Sociopolítica da Língua Portuguesa” (Parábola Editorial, 2016), Faraco atribui as marcantes diferenças no Brasil entre a norma culta e as chamadas variantes populares à divisão da sociedade brasileira desde a sua origem.

 

Na época colonial, era nítida a distinção entre uma elite econômica e uma massa de escravos e trabalhadores pobres. “Essa partição social repercutiu na história social brasileira. Há um fosso sociolinguístico, histórico, muito acentuado.”

Faraco aponta, portanto, dois problemas: a distância entre o registro culto e as variantes populares, fato que alimenta o preconceito linguístico, e a defasagem entre a norma culta e a norma-padrão.

“No Brasil, a frequência com que se faz a concordância verbal é fator de corte socioeconômico: ninguém faz a concordância em 100% dos casos. No entanto, baixa frequência sinaliza aos que estão nos andares de cima que o falante tem pouca escolaridade e isso pode ter trágicas consequências no convívio social”, explica.

O professor reconhece que, para fazer frente ao desafio de atualizar a norma-padrão a fim de que ela, no mínimo, reflita a realidade dos falantes da norma culta, ainda falta produzir uma boa gramática de referência.

“Somos todos muito tímidos e pouco corajosos para dar um grande passo capaz de deslindar nosso imbróglio normativo. Abrir o debate já seria um passo importante”, sinaliza. O debate está aberto.

Leia mais sobre a história, as curiosidades e a diversidade do idioma português no especial "O Tamanho da Língua".

Veja mais no blog da Thaís Nicoletti de Camargo, consultora de português da Folha.

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