Distinção entre posse e propriedade é entrave para invasões urbanas

Estratégia de sem-teto é alvo de debate e controvérsia dentro e fora de tribunais

Moradores acampam em praça do centro de São Paulo após desabamento de prédio invadido
Moradores acampam em praça do centro de São Paulo após desabamento de prédio invadido - Danilo Verpa - 04.mai.18/ Folhapress
São Paulo

“A ocupação não é uma finalidade, é um meio”, explica Evaniza Rodrigues, 49, militante da União dos Movimentos de Moradia (UMM), entidade pioneira na reivindicação do direito à moradia em São Paulo por meio desse tipo de ação. “Ocupação é pressão, mas não solução para o problema de moradia.”

Entenda o que já se sabe sobre o desabamento de prédio em SP

A estratégia de invadir a propriedade privada de alguém, ainda que ela esteja ociosa há certo tempo, no entanto, é alvo constante de debate e controvérsia, dentro e fora dos tribunais.

A Constituição de 1988 consagrou tanto o direito à propriedade (artigo 5º) quanto o direito à moradia (art. 6º). e determinou que a propriedade tenha função social. Também facultou ao poder público municipal a exigência de que propriedades em solo urbano não edificadas, subutilizadas ou não utilizadas promovam seu aproveitamento sob pena de, em última instância, desapropriação (art. 182).

Esses mesmos princípios que determinam que a propriedade tenha função social estão presentes no Código Civil, no Estatuto das Cidades e no Plano Diretor Estratégico de São Paulo.

 

“A propriedade não é um direito absoluto. A ocupação de uma área ociosa que descumpre a função social determinada pela Constituição representa uma pressão legítima dos movimentos sociais para que a lei seja cumprida”, afirma Felipe Vono, 29, advogado do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Ele diz atuar na defesa das ações da organização liderada pelo presidenciável Guilherme Boulos (PSOL) de forma voluntária.

Para Vono, as invasões se massificaram no país porque não há programa que combata o déficit habitacional brasileiro. “O valor do aluguel sobe enquanto o salário vem reduzindo. Num cenário de crise econômica e de retirada de direitos trabalhistas, as ocupações não são escolha, mas única alternativa para exigir o direito a moradia no país. É uma panela de pressão que só tende a se agravar.”

Segundo a Fundação João Pinheiro, responsável por elaborar o déficit habitacional brasileiro a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2015 havia a necessidade de construção de 6,4 milhões de domicílios, dos quais 5,6 milhões, ou 88%, deveriam ser localizados nas áreas urbanas. De acordo com a Pnad 2015, o Brasil possui 7,9 milhões de imóveis vagos, 80% deles localizados em áreas urbanas. Desse total, 6,9 milhões estão em condições de serem ocupados, e 1 milhão, em construção ou reforma.


O QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO

Artigo 5º 
> É garantido o direito de propriedade
> A propriedade atenderá a sua função social
> A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social

Artigo 6º
São direitos sociais a educa-ção, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância [...]


IPTU PROGRESSIVO

Donos de terrenos sem edificação ou função social ou imóveis abandonados, segundo a legislação, teriam que ser notificados para que construam ou apresentem projeto para o espaço em dois anos.

Se isso não for feito, aplica-se o IPTU progressivo por cinco anos, atingindo até 15% do valor do imóvel de forma a punir financeiramente o proprietário que subutiliza o local. O imposto, no entanto, não é cobrado de bens federais, caso do edifício Wilton Paes de Almeida, que desabou no último dia 1º no centro de SP, deixando ao menos um morto —seis pessoas seguiam desaparecidas nesta segunda (7).

Se o IPTU ainda não for suficiente para que se dê função adequada ao imóvel ou terreno, o poder público pode desapropriá-lo. Esses dispositivos estão previstos no Estatuto das Cidades, criado pela lei 10.257 de 2001.

“Nosso Judiciário é conservador e não costuma reconhecer a legislação urbanística”, afirma o engenheiro e urbanista Luiz Kohara, um dos fundadores do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. “O direito à propriedade e à moradia são constitucionais e um não pode se sobrepor ao outro, mas sempre se privilegia o direito à propriedade porque quem decide desconhece completamente a realidade de quem precisa do direito a moradia”, diz

Quando um imóvel não utilizado é ocupado, em geral seu proprietário busca reaver a posse do imóvel mediante uma ação possessória na Justiça.

Roberto Pimentel, promotor da área de habitação, explica que posse e propriedade são conceitos distintos. “Pela lei, posse é um aspecto da propriedade e pode existir sem ela. Um inquilino, por exemplo, tem a posse, mas não tem propriedade de certo imóvel.”

A posse é, portanto, um uso do bem, e não um direito a ele. “Se ficar comprovado que o imóvel estava abandonado, isso quer dizer que o proprietário não exercia sua posse.” 

Advogados de movimentos argumentam que, se a posse não existia antes da ação judicial, no caso de imóveis e terrenos abandonados ela não pode ser reconhecida posteriormente à ocupação. “Podemos encontrar falhas no cumprimento da função social da propriedade. A gente não vê essa previsão constitucional sendo aplicada sistematicamente”, admite o promotor Pimentel. Para ele, os instrumentos para sua aplicação precisam ser aprimorados e concretizados.

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